Se continuarmos a vacinar por “grupinhos” vamos acumular doses em armazém

É preciso acabar com a vacinação por grupos de doenças e avançar para a vacinação por idades, defende o vice-almirante Gouveia e Melo. “Não faz sentido ficar a maior parte da população à espera que se vacinem os grupinhos todos”, diz.

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Na segunda fase da campanha de vacinação contra a covid-19, os cidadãos vão poder passar a escolher a data e o local através da auto-inscrição num site que está a ser criado para o efeito, mas isso será organizado por faixas etárias. Começa primeiro pela dos 70 anos, passa depois para a dos 60 e assim sucessivamente, explica o vice-almirante Henrique Gouveia e Melo, coordenador do grupo de trabalho (task force) responsável pela operação. No programa Hora da Verdade, da Rádio Renascença e do PÚBLICO, Gouveia e Melo revelou que o primeiro teste desta nova metodologia deve avançar na terceira semana de Abril.

Quanto à vacinação dos professores e funcionários das escolas, diz que está a servir para “testar o processo de vacinação” em massa e acredita que não afectará a imunização dos outros grupos prioritários, porque a maior parte dos 280 mil serão vacinados no fim-de-semana de 10 e 11 de Abril, quando quase 100% dos idosos a partir dos 80 anos e os doentes de maior risco já terão tomado a primeira dose. O vice-almirante defende que se passe a usar o critério da idade, argumentando que, continuando a vacinar por “grupinhos”, o país vai acumular doses em armazém que podiam estar a proteger pessoas.

A primeira fase devia ter terminado no final de Março. Quando vão estar vacinados todos os idosos com mais de 80 e as pessoas com doenças de maior risco?
De acordo com as nossas estimativas, a seguir à segunda semana de Abril. Estamos a fazer um esforço muito grande para que, até 11 de Abril, praticamente 100% dos idosos e pessoas com as co-morbilidades da fase 1 estejam todas vacinadas. Claro que nunca se garante 100%, porque há sempre umas bolsas de pessoas que ficam para trás, porque não se conseguiram contactar.

Como vão resolver o problema dessas bolsas?
Temos um processo mais fino com a ajuda das autarquias, dos centros de saúde, de tentar chegar a esses idosos que estão ou isolados ou acamados, ou que são info-excluídos. 

Os ministros da Educação e do Ensino Superior insistiram sempre que as escolas são lugares seguros. Apesar disso, 280 mil professores e funcionários foram colocados à frente de milhares de doentes da primeira fase, como cardíacos e doentes renais e pulmonares graves. Os peritos da comissão técnica de vacinação da Direcção-Geral da Saúde (DGS) contestam esta decisão. Como se justifica a inclusão deste novo grupo na primeira fase?
Acho estranho que os peritos contestem esta prioridade, porque a prioridade vem da DGS. Nós cumprimos um plano de acordo com prioridades definidas pela DGS. Temos a necessidade de ganhar resiliência do Estado, para que seja possível dar respostas durante a pandemia, mas, por outro lado, enquanto as vacinas são escassas, temos de concentrar o máximo na população mais fragilizada e mais idosa. Definimos uma regra simples: 90% das vacinas disponíveis iam para acelerar este processo de salvar vidas e 10% para ir ganhando resiliência do Estado. [Além disso], a grande tranche de docentes e não docentes, 200 mil, é vacinada no fim-de-semana de [10 e] 11 de Abril, quando a fase 1 está praticamente fechada, porque atingimos 100% dos outros grupos. Estamos a preparar-nos para uma fase de vacinação maciça e temos de testar sistemas [desse tipo].

Os professores estão a ser utilizados para este teste, portanto?
Os professores também servem para testar todo o sistema [de vacinação em massa].

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E a resiliência fora do Estado?
Vai ser ganha com a vacinação por faixas etárias. O que está em causa para a segunda fase? Neste momento está-se a discutir com a DGS se devemos ou não continuar a [dar prioridade a] grandes grupos, por exemplo diabéticos, hipertensos, que podem ser três milhões de pessoas. Ao vacinar por idade, também estamos a vacinar pelas doenças. A maior parte das doenças estão associadas à idade. As doenças não associadas à idade é que devem ter prioridade. Estamos a combater com uma estratégia com duas coisas em simultâneo, também [queremos] ir buscar pessoas menos idosas que teriam de esperar muito tempo, mas que têm doenças que podem ser muito críticas.

Como as pessoas que fizeram transplantes, por exemplo?
Parece-nos que é mais justo. As pessoas mais doentes são as pessoas mais idosas. A excepção deve ser para outros pequenos grupos que têm doenças raras ou muito específicas e que, pelo critério da idade, teriam de esperar meses.

Quando será tomada a decisão de passar a usar o critério da idade?
Está a ser tomada neste momento, são decisões que implicam alguma reflexão. Os planos têm de mudar. Há uma fase em que há muito poucas vacinas e de repente há um maremoto de vacinas.

Tem confiança de que o que chama “o maremoto de vacinas” vai mesmo chegar em Abril?
Se não houver um maremoto, tem de se readaptar outra vez o plano. No primeiro trimestre chegaram 2 milhões de vacinas e estavam previstos 4,4 milhões. [No segundo] vão chegar 9 milhões e não podemos estar a fazer um progresso tipo filigrana. Temos de avançar com outro, em que a rapidez, o ritmo da vacinação é o mais importante. Não devo criar dificuldades a esse ritmo porque [se o fizer] fico a acumular vacinas. Isso é que é inaceitável. O processo é complexo e, se tiver de andar à procura de tantos códigos das doenças e disto e daquilo, não consigo vacinar 100 mil a 120 mil pessoas todos os dias.

A vacinação por grupos dificulta a rapidez da operação?
Claro que sim, porque a organização muito complexa e cheia de regras dificulta toda a logística e a eficiência do processo. E a diferença entre as pessoas terem sido vacinadas através de critérios de grupos ou vacinadas por critérios etários é uma questão de dias. Agora, não é uma questão de dias se tentar fazer o contrário. Não faz sentido ficar a maior parte da população à espera que se vacinem estes grupinhos todos e a acumular vacinas em armazém que podiam estar a dar protecção a pessoas.

Já disse que vai ser criado um site para as pessoas se auto-inscreverem. Mas isso não fará com que os que têm mais iniciativa, provavelmente os mais jovens, se inscrevam primeiro?
Não, porque a auto-inscrição vai ser feita por faixas etárias, de x em x tempo abre uma faixa etária para inscrição. E os dois métodos vão continuar a existir, o do sistema central que vai à base de dados e que está a ver quem não foi chamado e o o auto-agendamento. As pessoas vão poder escolher a data e o local, porque isso facilita imenso o processo. Tenho 100 mil lugares para encher todos os dias, e, em vez de andar à procura de 100 mil pessoas para encher os lugares, quero que essas pessoas se cheguem à frente e de forma proactiva tentem preenchê-los. O primeiro teste será na terceira semana de Abril. Vamos começar com a faixa etária que estiver por preencher. Presumo que será na faixa dos 70, depois 60, depois 50, depois 40, até acabarmos.

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Mas precisa de pessoal para vacinar. Tem essas contas feitas?
Precisamos de cerca de 2500 enfermeiros, 400 médicos e 2300 auxiliares, grosso modo. Nos cuidados de saúde primários há cerca de 9 mil enfermeiros. É aceitável usar até 20% desses enfermeiros na vacinação. Mas os cuidados primários têm de recuperar a actividade assistencial [que ficou por fazer]. Portanto, o que estamos a tentar fazer é ter entre mil a 1500 profissionais do SNS para enquadrarem a resposta e depois ir buscar outros. Ou pessoas que não estão empregadas ou que estão a sair agora das escolas de Enfermagem, que estão a acabar a sua formação, ou então enfermeiros em horário extraordinário.

Podem ser, então, estudantes de Enfermagem?
Não estudantes, mas pessoas que estão a passar da fase do ensino para a fase profissional. O que é preciso é encontrar soluções dentro e fora do Serviço Nacional de Saúde. 

Como responde às associações de doentes que reclamam ter prioridade?
Todas têm razão, só que o número de vacinas não permite vacinar todos. Essa hierarquização magoa muita gente, mas a indecisão é que não pode acontecer.

Quantas doses estão encomendadas?
Temos 35,8 milhões de doses encomendadas e prometidas. O Governo não poupou e comprou um leque diferenciado de vacinas para evitar ficar dependente de um tipo de vacinas. Na segunda quinzena de Abril vamos receber 80 mil doses da vacina da Janssen, que pode ser reservada para situações logisticamente mais complicadas, como é o caso dos acamados.

No Canadá e em Berlim decidiu-se agora dar só a vacina da AstraZeneca a partir dos 55 anos. Não está preocupado?
Há muitos episódios sobre a Astrazeneca… se correspondem a uma preocupação de saúde efectiva ou outra coisa, não vou comentar, deixo à imaginação e à capacidade interpretativa das pessoas. Há um regulador europeu que tem cientistas e dados e uma capacidade que nenhum regulador de um país sozinho tem e que diz que esta é segura e eficaz.

O risco de não tomar a vacina contra a covid-19 é superior?
Posso fazer uma conta muito simples: há um evento tromboembólico em cada meio milhão de pessoas vacinadas, e ainda não há certeza que haja relação com a vacina da AstraZeneca. Em Portugal já morreram mais de 16 mil pessoas com covid, ou seja, em cada 600 portugueses um morreu. Não tomar a vacina tem um risco quase mil vezes superior.

O preço da vacina da AstraZeneca é muito mais baixo do que o da Pfizer e o da Moderna. Há quem diga que pode haver aqui uma guerra comercial.
Não posso comentar, deixo isso ao bom critério das pessoas. A realidade é que esta a vacina é mais barata, eles prescindiram do lucro, é o que é.

Vamos mesmo chegar à imunidade de grupo em Agosto, como já disse?
Gosto mais do conceito de protecção de grupo do que do de imunidade de grupo. A imunidade de grupo significa que a pessoa vacinada não é transmissora de vírus, a protecção de grupo significa que aquela pessoa está protegida. Se as vacinas chegarem, no final do Verão teremos mais de 70% da população com uma dose, não quero especificar a data a, b ou c.

Concorda com os que defendem a quebra de patentes

A quebra de patentes é um precedente perigoso. Claro que há muito investimento público que deve ter um retorno, mas o investimento também foi muito importante para acelerar o desenvolvimento da vacina. Nós pagamos para ter uma vacina este ano e não daqui a cinco anos.

Quando vai ser vacinado?
Pelas minhas funções militares, já devia ter sido vacinado, mas prescindi da vacina, porque acho que nestas funções tenho de dar o exemplo. Vou arriscar e tentar dar a minha vacina a quem mais precisa. Nessa posição, não me parece muito curial em termos éticos estar a utilizar a minha função militar para me vacinar.

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