Os mil eufemismos em redor da palavra “mentira”

Temos muito menos cuidado quando o sujeito em causa é uma criança, sobretudo se é uma criança que nos cabe educar. Não queremos que “cresça” mentirosa, que se “habitue” a usar a mentira.

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@designer.sandraf

Querida Filha,

É indecente duvidar da palavra de alguém, por isso entre adultos encontramos mil eufemismos em redor da palavra “mentira” — dizemos que a pessoa se “enganou”, “percebeu mal” ou, o melhor de todos, “faltou à verdade”, pondo o foco no comportamento procurando fugir ao rótulo ofensivo. Temos muito menos cuidado quando o sujeito em causa é uma criança, sobretudo se é uma criança que nos cabe educar. Não queremos que “cresça” mentirosa, que se “habitue” a usar a mentira, nem o nosso narcisismo suporta que possa imaginar que caímos que nem uns patinhos na sua mentira. E se isto já é difícil para os pais, torna-se mais complicado com os avós, acho eu, porque temos sempre medo de ferir uma relação necessariamente mais frágil e com menos oportunidades de reparação.

Além disso se a mentira é usada como fuga a uma obrigação imposta pelos pais, temos medo de que a) os nossos filhos nos acusem de lhes termos desobedecido e b) a criança acabe por mais tarde sofrer a “retaliação” dos próprios pais.

O que me tens a dizer a isto?


Querida Mãe,

Antes de mais, e caso não se lembre, hoje é Dia das Mentiras, por isso pode mentir à vontade sem culpa. Depois, trago boas e más notícias sobre as mentiras nas crianças, e isto porque vi uma TED Talk giríssimo com o Dr. Kang Lee que dedica a vida ao estudo da neurologia e sociologia dos comportamentos sociais em crianças pequenas.

O investigador começa por desmistificar algumas ideias preconcebidas que temos sobre as mentiras nas crianças, nomeadamente a de que são incapazes de mentir quando são muito pequenas, de que não mentem muito bem — e que, implicitamente, nós somos bons a perceber quando nos mentem —, e que a mentira é um sintoma precoce de alguma patologia ou falha de carácter.

A sua experiência laboratorial consistia em pôr um investigador a jogar com uma criança (a experiência foi repetida em milhares de crianças de diferentes contextos e idades), mostrando-lhe umas cartas de jogar com uns números escondidos — quem conseguisse acertar ganhava um enorme prémio. A parte relevante da história é que o investigador fingia ter um assunto para tratar e saia da sala, dando-lhes a oportunidade de espreitar as cartas. Independentemente da idade, contexto, sexo, etc., a verdade é que 90% das crianças espreitaram. Mas o que lhe interessava mesmo era saber quantas dessas iam mentir acerca desse acto: aos 2 anos, 30% mente; aos 3 anos, 50%; aos 4 anos, 80%; e a partir dai quase todas.

Segundo os autores do estudo isto revela como as crianças são capazes de mentir desde muito cedo e que a mentira é um passo de desenvolvimento normal. Aliás, e mãe, essa é a boa notícia, segundo o Dr. Lee, os pais devem celebrar quando apanham o filho a mentir porque revela duas competências fundamentais, que se não forem adquiridas, aí sim, são sintoma de problemas de desenvolvimento: a Teoria da Mente (ou seja, a capacidade de perceber que outras pessoas podem não saber aquilo que eu sei, ou que podem saber coisas que eu não sei) e o autocontrolo (tanto do discurso, como das expressões faciais). Crianças que têm estas competências mais avançadas tornam-se mentirosos mais sofisticados.

Agora vem a má notícia! Os adultos são péssimos a detectar as mentiras das crianças. Noutro estudo conduzido pelo Dr. Lee, nem sequer adultos com formação específica e com muita experiência em crianças (como juízes, assistentes sociais, professores, etc.) conseguem adivinhar quem é que está a mentir. Também os pais, em relação a outras crianças, e até os pais em relação aos seus próprios filhos, têm pontuações mais baixas do que as percentagens do acaso, quando tentam interpretar se uma criança está a mentir ou a dizer a verdade. Mas isto não significa que as crianças sejam mentirosas, apenas que temos que ter muito cuidado quando as acusamos de o ser, porque a verdade é que temos forte probabilidade de nos enganarmos. E acusar injustamente uma criança a mentir é tão grave, que é preferível pecar por nos deixarmos enganar de vez em quando.

A última boa notícia que tenho para lhe dar é que o estudo não refere os avós! Será que os avós são melhores a apanhar mentiras? Experimentem! Mas, e esta parte já é da minha cabeça, mesmo que os apanhem a mentir, vale a pena tentarem perceber porque é que o fazem. Segundo o Dr. Khan a mentira vem sempre envolta em sentimentos de medo e de culpa. Na minha experiência profissional e pessoal muitas vezes as crianças mentem quando sentem que não têm alternativa porque se disserem a verdade, nem serão escutadas, nem as suas razões para o que fizeram ou não querem fazer serão consideradas válidas. O que, pensando bem é também a razão que nos leva a todos a mentir. Darmo-nos mais espaço, uns aos outros, para sermos sinceros pela forma como nos sentimos sem medo de represálias, pode ser das maneiras mais eficazes de acabar com alguns ciclos de mentiras que tanto preocupam tanto os pais. E não, mãe, escutar não é sinónimo de concordar — podemos ouvir as suas razões, dizendo-lhes depois claramente o que pensamos delas.

Beijinhos


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook Instagram.

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