Novo modelo de proteína do SARS-CoV-2 revela potenciais alvos para vacinas

Através de modelos computacionais muito realistas, reconstituíram-se pedaços da proteína da espícula que faltavam e conseguiu-se vê-la em acção.

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Manchas púrpura na proteína da espícula indicam potenciais locais-alvos para anticorpos que não estão protegidos por glicanos (a verde) Mateusz Sikora/Sören von Bülow/Florian E. C. Blanc/Michael Gecht/Roberto Covino/Gerhard Hummer
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Manchas púrpura na proteína da espícula indicam potenciais locais-alvos para anticorpos que não estão protegidos por glicanos (a verde) Mateusz Sikora/Sören von Bülow/Florian E. C. Blanc/Michael Gecht/Roberto Covino/Gerhard Hummer

Um novo e dinâmico modelo da superfície da proteína da espícula do SARS-CoV-2 revela “vulnerabilidade até agora desconhecidas” neste coronavírus e que podem dar informações no desenvolvimento de vacinas. Algumas dessas vulnerabilidades terão agora de ser confirmadas em laboratório. Os resultados desse trabalho foram publicados esta quinta-feira na revista científica PLOS Computational Biology.

Uma das características-chave do SARS-CoV-2 é a proteína da espícula, que é responsável pela entrada do SARS-CoV-2 nas células humanas. Muitas investigações conseguiram desenvolver modelos desta proteína. Contudo, uma equipa composta por cientista do Instituto Max Planck de Biofísica (na Alemanha) considerou que esses modelos não tinham em conta a flexibilidade da proteína da espícula nem o movimento dos glicanos (estruturas de hidratos de carbono complexas) que a revestem. E tinha-se a noção de que isso poderia dar mais informações no desenvolvimento de vacinas.

Para colmatar essa falha, a equipa coordenada por Gerhard Hummer desenvolveu simulações de dinâmica molecular para que fosse possível ter a estrutura completa da proteína da espícula e os seus movimentos num ambiente real.

Essas simulações acabaram por mostrar que os glicanos na proteína da espícula actuam como um escudo dinâmico que ajuda o vírus a escapar ao sistema imunitário humano. Em comunicado, a equipa compara os glicanos a pára-brisas de um carro: ao se balancearem para baixo e para cima, eles cobrem toda a proteína, mesmo que a sua cobertura seja mínima a qualquer instante.

Ao se combinarem simulações dinâmicas da proteína com análises bioinformáticas, identificaram-se ainda zonas na sua superfície que são menos protegidos pelo escudo dos glicanos. Alguns desses locais já tinham sido detectados, mas outros são uma novidade. Agora, a vulnerabilidade de muitos desses novos locais terá de ser confirmada por outras equipas com experiências em laboratório.

Num comentário a este trabalho, Diana Lousa, cientista no Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB) da Universidade Nova de Lisboa, começa por destacar ao PÚBLICO que se sabe que a proteína da espícula é essencial no processo de entrada no vírus nas nossas células e o principal alvo do nosso sistema imunitário. Por isso, são o foco de inúmeras vacinas. “É preciso conhecer muito bem a estrutura e, neste momento, há já várias dezenas de estudos experimentais que nos dão uma imagem detalhada desta estrutura”, relata a investigadora que não participou no estudo agora publicado.

Contudo, realça que ainda falta conhecer algumas peças desse puzzle: “Há partes da proteína que não são visíveis experimentalmente e não conseguimos com estes métodos perceber como se move para ‘abrir a porta’ das nossas células e para escapar ao sistema imunitário”, esclarece. “Neste estudo, usaram métodos de simulação molecular, que são uma espécie de ‘microscópio digital’.”

De uma fotografia a um filme

A investigadora descreve que nessa investigação, ao se usarem modelos computacionais muito realistas, se conseguiu reconstituir os pedaços da proteína que faltavam, bem como observar os seus movimentos e vê-la em acção. “Deixámos de ter apenas uma fotografia estática e passámos a ter um filme dinâmico.”

E qual poderá ser o contributo? “Isto permitiu perceber melhor que zonas ficam expostas aos anticorpos e prever quais são as regiões que podemos usar para desenvolver futuras vacinas”, nota Diana Lousa. Este novo trabalho permite assim conhecer melhor um dos alvos principais do SARS-CoV-2 e fornece pistas importantes que podem ser usadas no desenvolvimento de novas vacinas e fármacos, podendo estas ser “mais focalizados em regiões específicas desta proteína e que possam ser eficazes contra várias variantes”, perspectiva.

Ao PÚBLICO, Mateusz Sikora (investigador do Instituto Max Planck de Biofísica e primeiro autor do artigo) pormenorizou que o “mais interessante” é que novos locais agora identificados se localizam em partes distintas da proteína da espícula e, desta forma, muitos anticorpos (as defesas do nosso organismo) diferentes podem ligar-se a eles simultaneamente. “Isto significa que, se formos capazes de desencadear uma resposta imunitária contra alguns deles, então o vírus terá pouca capacidade de mutar e de escapar às vacinas” indica.

Embora o modelo tenha sido feito antes de se ter conhecimento das variantes de preocupação, concluiu-se que continua válido para elas. “Os sítios que detectámos não serão muito mais protegidos nas variantes do que no vírus original”, refere o investigador. Se uma variante com uma protecção pelos glicanos muitos diferente aparecer, então as simulações terão de ser refeitas e os locais agora detectados novamente avaliados.

“Estamos numa fase da pandemia que é impulsionada pelo surgimento de novas variantes do SARS-CoV-2, com mutações concentradas principalmente na proteína da espícula [como é o caso da inicialmente detectada no Reino Unido, África do Sul e Manaus]”, comenta. “A nossa abordagem pode ajudar na concepção de vacinas e de anticorpos terapêuticos.” Mateusz Sikora diz que os resultados já tinham sido disponibilizados online há uns meses e que isso tem despertado o interesse de diferentes laboratórios. A equipa espera também que o mesmo método seja usado para identificar vulnerabilidades de outras proteínas virais.

No laboratório de Modelação de Proteínas do ITQB, onde trabalha Diana Lousa, também se estão a usar métodos de simulação molecular para se entender, por exemplo, como a proteína da espícula interage com o receptor das nossas células ou qual o impacto de novas variantes nessa interacção. Usam-se ainda modelos computacionais para se projectar proteínas que não existem na natureza para que possa bloquear a entrada do vírus nas células.

Já há alguns resultados preliminares interessantes e promissores, mas a investigadora diz que mais novidades e “coisas mais fechadas” surgirão nos próximos meses. Por agora, apenas sublinha: “Estes métodos computacionais têm um papel cada vez mais importante na biologia moderna e, como se viu neste estudo, são complementares aos métodos experimentais”.

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