AO90, um brilharete político

O Estado tornou-se, como vem sendo há mais de um século, o mandante em matéria ortográfica. E a linguística obedece, produz e, a partir daí, faz papel de morto.

Nas nutridas 300 páginas de Línguas em Português. A Lusofonia numa Visão Crítica (orgs. Sweder Souza e Francisco Calvo del Olmo, Porto, 2020), uma única vez o Acordo Ortográfico de 1990 é assunto de demorada conversa. Achamo-la no artigo do “diretor da coleção”, o professor João Veloso, da universidade do Porto. Aí se fala das “acaloradas discussões públicas –  completamente desprovidas, muitas vezes, de racionalidade do debate, conteúdo técnico ou imparcialidade de juízo – acerca de questões como o Acordo Ortográfico”, discussões que envolvem “frequentemente cidadãos sem qualquer ligação profissional ou preparação académica na área da linguística”. Com isto se vê, contudo, a importância “a nível simbólico”, isto é, social, “concedida à língua como um valor comum, como um bem patrimonial que apela a um sentimento de pertença e de forte identificação”. É tudo, na pena dum dos nossos mais importantes linguistas, e é pobre. Mas é também, por sua vez, imensamente revelador.

Seja dito que, dos quinze artigos do volume, só dois correspondem à “visão crítica” anunciada no subtítulo. São o contributo do sociolinguista galego-brasileiro Xoán Lagares (“Galego e português, uma mesma língua diferente”), e o do gramático brasileiro Marcos Bagno (“Por que insistir na ilusofonia?”). Neste último, lembra-se a completa falta de “planejamento linguístico explícito” por parte do Estado português como autoridade colonial. Isso torna, ainda hoje, “a ideia de lusofonia um mero artifício retórico”.

Assim foi, efectivamente. Enquanto a Espanha tinha, em finais do século XVI, espalhado já universidades pelas Américas, Portugal nunca fundou uma única em qualquer colónia sua. E só em 1808, com a corte refugiada no Rio de Janeiro, permitiu no Brasil a impressão de livros. Este histórico desinvestimento linguístico do Estado português tem hoje uma triste comprovação na saga do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90).

A primeira intervenção em Portugal em matéria ortográfica data de 1911. Leia-se bem. Nunca antes, em toda a história do nosso idioma, houvera qualquer regulamentação nesse domínio, e tudo indica que só a mudança de regime em 1910 veio impedir a perpetuação, até hoje, das grafias hymno, chrisantemo, pharmacia e milhares de outras. Quem levou a cabo essa meritória tarefa foi uma comissão nomeada pelo novo executivo republicano. A Academia das Ciências de Lisboa foi notificada e aderiu. O mesmo iria passar-se, muito depois, com os acordos ortográficos de 1986 e 1990. O governo encarregou um grupo de peritos de “unificarem” a ortografia do português, e eles apareceram com um produto que correspondia, achou-se, a esse ardente desejo político. Tudo redundou, porém, numa trapalhada das antigas.

O AO86 levou o encargo a extremos, será bom recordar, como a eliminação dos acentos das esdrúxulas: academico, cronica, subito, parabola, fenomeno e centenas de outros. O intento vinha de 1968, quando certo congresso internacional coimbrão apoiou essa medida, que resolveria ad aeternum o problema da diferente acentuação em Portugal e Brasil. O apoio surgiu por aclamação, numa cena de colectivo fervor transatlântico. No preço que isso teria não se pensou. Felizmente que, conhecida a proposta de 1986, brasileiros e portugueses estavam atentos, e fizeram-na em fanicos. Mas quem disse que a História não se repetiria? A mesmíssima comissão foi encarregada de produzir algo mais sensato, e assim apareceu um AO90, igualmente apostado em oferecer aos mandantes políticos um português graficamente “unificado”.

Todos os departamentos linguísticos universitários desaprovaram o produto, mas de nada valeu. Ele servia aos políticos como brilharete internacional. Outra vez se notificou a Academia das Ciências de Lisboa, que tentou uma contraproposta, nada tendo porém conseguido.

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O AO90 é, na sua quase totalidade, um produto deficiente. Mostraram-no, muito cedo já, Vasco Graça Moura e os linguistas António Emiliano e Francisco Miguel Valada. Mais recentemente, no PÚBLICO de 01.08.2016, também eu (que já em artigo de 1984, no JL, propusera uma circunspecta revisão ortográfica) expus as estruturais falhas do actual Acordo. Mas tudo isso foi ignorado pela linguística portuguesa (departamentos universitários, centros de investigação, associações do sector), que ao longo de 30 anos deu cobertura ao AO90. Ela, a linguística, não se sente concernida e, a julgar pelos termos do professor João Veloso, tudo reduz a, repitamos, “discussões públicas – completamente desprovidas, muitas vezes, de racionalidade do debate, conteúdo técnico ou imparcialidade de juízo”. E, contudo, a guilda linguística portuguesa também nunca defendeu, ou sequer explanou, esse Acordo que factualmente respeita. Ele é, tudo o indica, assunto tabu, curiosa situação em ambiente científico. Como escreveu o físico e ensaísta Carlos Fiolhais no Expresso de 23.01.2017, “Os autores do Acordo Ortográfico nunca foram capazes de explicar a sua bondade”. Até fora da profissão há consciência disso.

Ora, mesmo encarado com benevolência, o AO90 contém questões mal resolvidas. Vejamos uma patente contradição. Tendo  tomado a pronúncia, e já não a etimologia, como primeiro critério da grafia, vem estragar tudo ao eliminar as consoantes mudas (sobretudo “c” e “p”) que, em Portugal, garantem a abertura das átonas precedentes. Não tem lógica. Se se respeita a nossa pronúncia, devem manter-se as medidas que a acautelam. Resultado: junto a intercessão, aparecem agora as grafias interceção e interseção, claramente pedindo problemas. Que esta última seja ‘variante’ de intersecção só cria ainda mais ruído. São coisas que, está visto, não tiram o sono aos linguistas. Como não lho tiram as perplexidades dum falante confrontado com as as novas homografias adição, aditivo, corretor, coação, para, ótico, andamos vs. andámos. Uma pessoa diria que tudo isto, ou alguma coisa disto, deveria fascinar um linguista e motivá-lo a uma explanação. Não é assim. A linguística portuguesa não só nunca se deu por achada como jamais mostrou interesse pelas consequências do AO90.

Um autêntico linguista poderia observar, catalogar e explicar as centenas de hipercorrecções que, dia após dia, nos saltam aos olhos (o prémio vai para exeto, execto, exepto, excepo, execpto, tudo documentado), ou os milhares de tropelias ortográficas (o prémio vai para um pato com o diabo, em edição póstuma de Saramago), ou os fatos e contatos que a 2ª série do Diário da República diariamente publica. Mas não. A adormentada linguística portuguesa não abre sequer um olho para melancolicamente confessar: “Não era isto o que queríamos”. E porquê? Porque, em matéria de AO90, a linguística portuguesa nunca quis nada. Deixou correr, desinteressou-se, demitiu-se, desde sempre refém duma agenda política alheia.

Insista-se: tudo isto demonstra quanto a nossa questão ortográfica é de natureza política. O Estado tornou-se, como vem sendo há mais de um século, o mandante em matéria ortográfica. Cria comissões ad hoc. E a linguística obedece, produz e, a partir daí, faz papel de morto.

A “unificação” ortográfica dos países de língua portuguesa é, definitivamente, objectivo inalcançável, e qualquer tentativa de forçá-la acaba em caricatura, tapando num lado e destapando noutro. O AO90 foi, nisto, exemplo acabado, ao criar centenas de novas discrepâncias que nada resolveram e só nos ficarão envergonhando. Venha agora, e depressa, uma comissão que nos liberte deste emaranhado que ninguém pediu e restitua à língua portuguesa um rosto apresentável.

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