Pôncio Pilatos vive. Em Cabo Delgado

O Governo português, tendo-se apercebido de que o tema era altamente incómodo para o governo moçambicano, ignorou o assunto e nada fez.

1. Ao fim de mais de três anos lancinantes, parece ter despertado a consciência – mas ainda só a consciência – da tragédia que se vive em Moçambique. É vergonhoso que o tema só tenha verdadeiramente saltado para a ribalta quando um número apreciável de estrangeiros – isto é, de não moçambicanos – passou a figurar entre as vítimas ou a estar em perigo iminente. Em Portugal, só agora vemos todos os meios de comunicação social a dar visibilidade ao drama em curso; só agora vemos os mais altos responsáveis políticos a fazer algum tipo de declaração. Enquanto os visados pareciam apenas ser os moçambicanos do Norte, ouvia-se tão-só a voz do bispo Luiz Lisboa e do Papa Francisco, que, por mais de uma vez, a quis ampliar e amplificar. Chegou a vez dos estrangeiros e agora o terror, a morte, a fome e o desespero ecoaram na cidade e no mundo. Enquanto milhares eram mortos, largas centenas de milhares tinham de fugir, milhares de jovens mulheres eram violadas e escravizadas, milhares de rapazes eram recrutados à força para milícias ou bandos de guerra, milhões – sim, milhões – sofriam as consequências directas do terror, quase todos estiveram calados, quase todos guardaram um injustificado silêncio.

2. Antes do mais, chocava a inércia e a indiferença – como ontem aqui se escreveu em editorial – do governo de Maputo. Nunca quis reconhecer a insurgência e a sua acção maléfica; misteriosamente, procurou ignorar e ocultar o aumento da violência e das violações dos mais elementares direitos humanos na sua província mais a norte. Fechou-se a algumas tentativas de contacto da comunidade internacional, invocando as suas prerrogativas soberanas – que, em rigor, são desafiadas diariamente no território de Cabo Delgado. A comunidade internacional, que tinha todos os meios para persuadir o governo de Moçambique a actuar de modo diverso e a abrir-se a ajuda externa, foi sempre inerte e reactiva, não dando quase relevo nenhum a desenvolvimentos cada vez mais preocupantes. Esta atitude ostensivamente negligente antolha-se tanto mais surpreendente quanto está seguramente em causa (mas não só) uma ofensiva expansionista do islamismo radical, verdadeiramente do jihadismo. Uma tal ofensiva, aliás, desceu do centro de África para a costa leste, com ligações comprovadas a grupos extremistas que, em seu tempo, actuaram no território do Iraque. A pobreza endémica, as diferenças étnicas, as novas riquezas e a eventual competição geoeconómica só contribuem para exacerbar a lógica conflitual, mesmo onde ela parece simplesmente religiosa. 

3. Mais incompreensivelmente tem procrastinado a União Europeia e o seu Serviço de Acção Externa, marcado pelo diletantismo do Alto Representante Josep Borrell. Depois de um esforço desproporcionado, conseguiu-se agendar uma primeira reunião da Comissão de Assuntos Externos do Parlamento Europeu a 6 de Julho de 2020. Basta compulsar as intervenções dos representantes da Comissão Europeia e do Serviço de Acção Externa para ver que não tinham a menor ideia dos termos da tragédia em curso em Cabo Delgado. Depois disso, pôde-se levar a plenário uma resolução, logo a 17 de Setembro. Aí as instâncias europeias pareciam ter percebido finalmente a urgência da situação, a necessidade de intervenção humanitária de emergência, de apoio médico e de realojamento. E, bem assim, a necessidade de estreita cooperação militar com Moçambique. Fizeram belas proclamações e “prometedoras” promessas. Depois disso, já tivemos mais um plenário e duas reuniões da Comissão de Assuntos Externos dedicadas a Cabo Delgado, mas o balanço é frustrante e desanimador. Nesse último plenário, Borrell, invocando que não tinha tempo disponível para se deslocar a Moçambique, designou o ministro dos Negócios Estrangeiros português seu enviado especial. Eram boas notícias, por todas as razões. A visita a Moçambique foi feita em Janeiro, mas, em vista dos resultados, parece ter-se limitado a cumprir calendário.

4. Não menos intrigante e ainda mais chocante foi, ao longo destes anos, o alheamento de Portugal e, em particular, do Governo. Durante muito tempo, o assunto não passou dos umbrais das igrejas, pois só a Igreja Católica falava do conflito e procurava reunir ajuda humanitária. Nem os jornais nem a esfera pública davam aquela tragédia em franca progressão nenhuma visibilidade. O Governo procurou sempre lavar as mãos, não incluindo este tópico nas suas preocupações, designadamente no quadro da CPLP e da própria União Europeia. Para quem procurou dedicar-se a esta causa e chamar a atenção para o problema, ficou sempre a sensação de que o Governo português não queria e não quis – melhor seria dizer, não quer – melindrar o poder em Maputo. Tendo-se apercebido de que o tema era altamente incómodo para o governo moçambicano – que tudo fez para o afastar da agenda –, o governo português ignorou o assunto e nada fez. Desta inércia e passividade apenas se salva e excepciona o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, que, em várias ocasiões, se dedicou ao tema, de resto, na mais complexa das vertentes, o auxílio militar. Já o Palácio das Necessidades primou pela ausência. Tardiamente, quando percebeu que em Bruxelas a situação não passaria despercebida, pediu a Borrell a delegação do encargo. Infelizmente, como se disse, da visita de Santos Silva não resultou nada de palpável, como bem mostram a deterioração e o agravamento do conflito.

5. Os cadáveres jazem nas ruas, as decapitações sucedem-se, as mulheres são violadas, raptadas e escravizadas, os jovens são recrutados à força, as famílias fogem às centenas enchendo as vilas e as cidades muito para lá da sua capacidade, o pouco património é destruído, os símbolos religiosos são vandalizados, as populações são ameaçadas e chantageadas. E os poderes, como Pilatos, nas vésperas da Páscoa, lavam as mãos. Alguém tem de enxugar as mãos e estendê-las às gentes de Cabo Delgado.

SIM Presidente da República. A promulgação da chamada “lei dos apoios sociais” é, antes do mais, um gesto de justiça. E tem um enorme significado político: assim o Governo Costa o queira perceber.

NÃO Grupo Parlamentar do PS. A inusitada chamada de Carlos Moedas à Comissão de Inquérito do BES, porque descabida e rasteira, mostra bem os receios que a candidatura à CM Lisboa gera no Largo do Rato.

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