A República à la carte

A “geringonça” incrustou-se no sistema de tal forma que já se pode construir leituras criativas da lei fundamental. Chega-se então a uma república à la carte, bem ao jeito do desenrascanço português.

A promulgação contra a vontade do Governo de três diplomas impostos pela Assembleia da República abre um novo mundo de oportunidades e incertezas na política nacional. Depois do equilíbrio falsamente precário da primeira “geringonça” e do equilíbrio realmente instável da segunda, temos agora um equilíbrio forçado pelo truque constitucional. Se a lei fundamental servia em primeiro lugar como alicerce de previsibilidade e segurança jurídica aos governos e às oposições, a partir da promulgação o regime entrou no catálogo do jazz: as pautas escritas servem apenas como base à inspiração dos intérpretes.

A norma-travão da Constituição que proíbe à Assembleia da República aumentar despesas ou reduzir receitas pode não proibir afinal coisa nenhuma. Tudo depende de avaliações subjectivas do Parlamento ou do Presidente sobre quanto se pode gastar a mais, do juízo sobre o que não se gastou ou até em consequência da firmeza ou a instabilidade do Governo. O primeiro-ministro, António Costa, exprimiu bem e com uma óbvia ponta de ironia o que está a acontecer: a nota do Presidente que justifica a promulgação é “muito rica, complexa e inovadora”, até mesmo “muito criativa”.

Não é difícil estar de acordo com os argumentos do Presidente. Há pessoas que precisam de ser apoiadas; há uma evidente tentação do Governo em fechar os cofres e gastar com a pandemia menos do que promete; o Governo é minoritário e tem de dialogar e negociar para ser viável. Tudo é compreensível e justificável, mesmo que o seu alcance seja duvidoso. Mas não esqueçamos o essencial: há uma norma constitucional que foi torpedeada. Em nome de altos interesses do país? Mesmo que assim seja, as dúvidas sobre esse torpedeamento mantêm-se.

Temos uma nova fronteira política no horizonte. A “geringonça” incrustou-se no sistema de tal forma que já se pode construir leituras criativas da lei fundamental. Chega-se então a uma república à la carte, bem ao jeito do desenrascanço português, em que as crises entre o Governo e a oposição dispõem de novos escapes. Doravante, o espírito e a letra da lei podem ficar entre parêntesis.

É bom que a experiência fique por aqui, como, de resto, o Presidente fez questão de avisar. Não apenas porque soluções desta natureza colocam as funções de Marcelo num nível mais presidencial do que semipresidencial, mas também porque a Constituição metida no congelador gera um cenário perturbante. Se agora o gesto se fez para reparar um erro crasso do Governo e para o recordar de que não tem maioria no Parlamento, da próxima pode servir para propósitos piores. Mesmo que a promulgação seja justa, o precedente causa arrepios a quem acredita na segurança do Estado de direito.

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