“Perdi a minha bebé às 25 semanas. Precisamos de falar sobre o luto”

Aos 31 anos, Cláudia Caetano despediu-se de Charlie, a sua bebé, na 25.ª semana de gravidez. Um ano depois, sabe que existe vida depois da perda gestacional. Criou o projecto Amor para além da Lua para apoiar quem passa pelo mesmo. Quer ajudar a “lidar com a dor”, não a “varrer para debaixo do tapete”. Um testemunho na primeira pessoa, construído a partir de entrevista.

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Cláudia Caetano, em Londres, em Março de 2021. Sean O'Leary

“Toda a gente quer ver a gravidez como algo mágico, e é. Mas também faz falta conversar sobre o luto, sobre perdas tardias. Ainda é um tabu. Tentam tanto consolar-nos que desvalorizam a nossa dor, por isso guardamo-la para nós.

Em Fevereiro de 2020 perdi a minha bebé. A minha gravidez foi normal, fui sortuda, não tive enjoos, só tinha sono. Pensei que a minha bebé ia ser igual a mim, preguiçosa e comilona. Estava tudo bem, fomos a todas as consultas. Vivo com o meu namorado em Londres há sete, oito anos, onde trabalho como directora de operações numa empresa do sector do turismo. Em 2019, decidimos ter um filho e aconteceu relativamente rápido. Como ele é irlandês, o nome da nossa bebé é Charlie.

Na 25.ª semana tive uma consulta de rotina e, no final, não se ouviu o batimento cardíaco. Cheia de esperança, pensei que talvez a bebé estivesse mais escondida, daí não a conseguirmos ouvir. Fui para o hospital, para garantirem que estava tudo bem, mas, infelizmente, a bebé já não estava viva.

Liguei ao Sean, ele saiu do trabalho como um louco e levou-me para casa. No dia seguinte, regressámos ao hospital para começar o processo de indução do trabalho de parto. Ninguém nos conta que, quando se perde uma gravidez, ainda temos de dar à luz. Não sei como passámos aqueles dois dias, não sei se dormi, não me lembro. Sei que chorei, não sei o que fiz. A Charlie nasceu a 22 de Fevereiro, às 00h22. Muito pequenina, perfeitinha.

Tivemos oportunidade de ver a bebé, ficámos num quarto particular mais afastados dos outros pais e mães. Deram-nos uma caixinha que tinha materiais caso quiséssemos dar banho à bebé, tinha dois cobertores, dois peluches. Por lei, quando a perda acontece depois das 24 semanas, tem de ser feito um funeral. Oferecem dois peluches porque um pode ficar connosco e outro pode ir com o bebé.

A pandemia e o confinamento chegaram poucos dias depois, e nem os meus pais nem os do Sean puderam viajar para Londres. Fizemos o funeral sozinhos, só nós.

No início, até agradeci o confinamento. Fechei-me na minha bolha e não queria lidar com o mundo, ver ninguém, falar. É como se o mundo parasse. Tudo é demasiado cru, doloroso. Não estamos cá. Mas passado uns meses já só queria voltar para o colinho da minha mãe. Abraçar os meus pais, que não vejo desde que estava grávida.

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Cláudia Caetano, em Londres, em Março de 2021.

A vida depois da perda é diferente, mas é possível. Os dias maus parecem infindáveis, mas vão sendo cada vez menos. Começamos a lembrarmo-nos do bebé com mais amor do que tristeza. Existirão sempre dias maus, semanas más, datas como as de nascimento serão sempre piores. O luto é para sempre, mas o amor também. Por isso, continuamos.

Na data que estava prevista para o nascimento da menina escrevi uma publicação no Facebook. Achei que seria bom celebrar o que ela também viveu, apesar de ter sido uma vida muito curtinha. Recebi imensas mensagens de pessoas com quem não falava há muito tempo. Colegas de escola, de trabalho, que também perderam as suas crianças. Disseram-me: ‘É tão triste que tenhas passado por isto, eu também passei, mas nunca tive coragem de o dizer.’

Uma dessas pessoas foi a Renata, fomos colegas na escola primária e já não falávamos desde os tempos da secundária. Dez dias antes do nascimento da minha Charlie, a Renata também perdeu o seu bebé, por volta das 22 semanas. Começámos a falar, apoiávamo-nos, nos dias piores enviávamos uma mensagem. E decidimos criar, juntas, o projecto Amor para além da Lua. Queremos disponibilizar no site e nas redes sociais informação sobre todos os tipos de perda, da perda precoce à mais tardia ou neonatal, e explicar todo este processo: o que esperar, como fazer a despedida, como homenagear, onde procurar ajuda

Quando divulgámos o projecto, enviaram-nos imensos testemunhos. Parecia que as pessoas tinham as suas histórias entaladas na garganta. Estamos a tentar criar um espaço seguro, onde a dor de mães e pais seja validada e onde ninguém fica sozinho. Por vezes, saber que alguém nos ouve, do outro lado, e não nos apressa a ficar bem é o suficiente.

‘Pelo menos foi cedinho!’, ‘Agora já sabes que podes engravidar’, ‘Ainda és nova, engravidas de novo!’ são algumas das frases que já ouvi. ‘Mais vale ser assim do que ter nascido com uma deficiência' — esta calha muito bem. ‘Deus precisava de mais um anjinho!' também é uma que adoro. Eu sei que as pessoas dizem estas coisas com a melhor das intenções, mas estão a desvalorizar a nossa dor. Como é que alguém continua uma conversa e diz que, por acaso, está a ter um dia mesmo difícil? Não continua.

As pessoas tendem a guardar tudo para si, ou mencionam, de passagem, o que aconteceu, e pedem desculpa por estragar a imagem bonita que os outros guardam da gravidez. Não queremos ser só a pessoa que perdeu o bebé, ser a pessoa triste. Por isso, apressamo-nos a estar bem. Não lidamos com a dor, varremos para debaixo do tapete. E, quando damos por isso, a montanha de pó é enorme. Passam-se meses, anos.

O mesmo acontece com as depressões e ansiedades, também ficam muito escondidas. Temos uma das línguas com mais adjectivos para classificar a tristeza, e não sabemos lidar com ela. Quando as pessoas dizem 'Vai dar uma volta que ficas bem!', 'Bebe um chá' ou 'Vai ver o mar', a conversa já está terminada.

Somos uma sociedade que quer imediatamente reparar tudo. Infelizmente, a perda não é algo reparável, nada traz o bebé de volta. Não há um momento, como nos filmes, em que vou olhar para o céu e sorrir. O luto fica para a vida, como ficam os bebés e o amor que sentimos por eles.

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