Era escusado dizer

É espantoso como a vida em sociedade nos faz adquirir certos tiques linguísticos.

Escusado será dizer que falamos demais. Preenchemos silêncios com murmúrios indecifráveis, utilizamos frases inventadas por outras cabeças, gastamos palavras que já nos chegaram gastas e sensaboronas aos lábios. Mas, se era escusado dizer, para que é que o dizemos?

É espantoso como a vida em sociedade nos faz adquirir certos tiques linguísticos. Maneirismos dispensáveis para acrescentar o que nunca fez falta. Dizemos que um acidente acontece num abrir e fechar de olhos, uma expressão que tem um problema conceptual logo à partida: se estamos de olhos fechados, como podemos garantir que o desastre não se terá dado única e exclusivamente na abertura das pálpebras? Dizemos que não há sombra de dúvida de que o Benfica vai ficar em terceiro, como se as dúvidas fossem capazes de bloquear a luz. Dizemos que torcemos o nariz quando a Manuela nos veio falar de um jantar à luz das velas, como se fôssemos um qualquer artista circense que domina a arte de mover partes do corpo que não estão munidas de um bom e potente músculo.

Encaixotamos as nossas mensagens em frases que outros construíram e damos por nós a usar o triplo das palavras do que era necessário. Pior: usamos as mesmas palavras, mesmo que queiramos dizer coisas diferentes. As metáforas servem-nos a todos porque temos pouquíssimo critério na hora de as escolher, e a originalidade dissipa-se com a violência de um foguete da Space X, com aquele risco acrescido de explodir sem grande espectacularidade.

E nem falo daqueles bravos assassinos da língua que cometem atrocidades quando dizem que coisa xis aconteceu “há anos atrás”. Não: uma coisa aconteceu há anos, que fique o “atrás” sossegado, não lhes gastemos o fato domingueiro. Ou aqueloutras que tropeçam na tentação de dizer “tenho um amigo meu”. Amigo, se o tens, já é teu. Ou tens um amigo ou falas de um amigo teu. As duas ao mesmo tempo é que não. (Nota determinante: não baralhar com os falsos pleonasmos, como avançar para a frente ou subir para cima, que podem ser úteis porque o seu contrário é bastante válido. Se imaginarmos que estamos de pé sobre uma mesa e precisamos de descer para um banco, estamos a descer para cima. O reforço do “para cima” no gesto de subir ou descer dá sempre um certo jeito.)

Stephen King costuma dizer que escrever é cortar. Falar também: falar é dizer o estritamente necessário, sem recorrer a muletas que repousam nos bengaleiros alheios, porque o preenchimento de silêncios nem sempre nos acrescenta valor à existência. E pode desde já o digníssimo leitor tirar o cavalinho da chuva, porque está o roto a falar ao nu nesta finíssima arte de evitar expressões idiomáticas.

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