Farmacêutica francesa condenada por “homicídios involuntários” no escândalo do medicamento Mediator

Medicamento esteve 33 anos no mercado, foi utilizado por mais de 5 milhões de pessoas e está associado a centenas de mortes. Servier era acusada de ocultar deliberadamente os seus efeitos secundários e terá de pagar 2,7 milhões de euros de multa.

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Irène Frachon, especialista em pneumologia, foi quem alertou para o perigo do Mediator em 2007 em França. IAN LANGSDON/EPA

A farmacêutica francesa Servier foi condenada esta segunda-feira a uma multa de 2,7 milhões de euros e considerada culpada de homicídio por negligência e dolo, por ter continuado a vender o medicamento Mediator mesmo depois de lhe terem sido associados efeitos secundários graves.

Num dos maiores escândalos de saúde dos últimos tempos em França, o Mediator, inicialmente aconselhado a doentes diabéticos com excesso de peso e, numa fase posterior, vendido como inibidor de apetite, terá causado entre 1500 a 2100 mortes segundo os especialistas, sem contar com os que ainda hoje sofrem das repercussões. O Governo francês coloca, porém, o número de vítimas mortais nos 500.

“Embora tivessem conhecimento dos riscos envolvidos já há vários anos”, os laboratórios Servier “nunca tomaram as medidas necessárias”, justificou a presidente do Tribunal Correccional de Paris, Sylvie Daunis, citada pela France 24.

A farmacêutica foi declarada culpada de “dolo agravado” e de “homicídio involuntário” num caso em que “milhares de pacientes foram vítimas”, e condenada a pagar uma multa de 2,7 milhões de euros. A empresa ficou, todavia, absolvida das acusações de “fraude”.

Da sua parte, a Servier defende que não sabia de quaisquer “sinais de riscos significativos” que pusessem em causa a venda do Mediator. Só em 2009 é que o descobriu, disseram os advogados, ano em que saiu do mercado e mais de uma década depois de o primeiro caso de problemas de coração a ele associado ter sido diagnosticado.

Também Jean-Philippe Seta, a segunda cara da farmacêutica logo atrás de Jacques Servier, o presidente da empresa, que morreu em 2014, foi condenado a quatro anos de prisão suspensa e uma multa adicional de 90.600 euros.

À Agência Nacional de Segurança dos Medicamentos (ANSM), por seu turno, foi atribuída uma multa de 303 mil euros pela demora em proibir a venda do Mediator, falhando “no seu papel de polícia sanitária e supervisão do medicamento”. A agência reconheceu-se parte responsável num caso que chamou de “tragédia humana”.

Sylvie Daunis declarou que, com o encobrimento deliberado das propriedades anorécticas e dos efeitos secundários do medicamento, de acordo com o jornal francês Le Monde, a empresa “enfraqueceu a confiança das pessoas no sistema de saúde”. Além das multas já mencionadas, terá ainda de compensar as vítimas em dezenas de milhares de euros.

Dez anos

O processo do Mediator demorou dez anos a chegar a tribunal. Iniciado em Setembro de 2019, envolveu 12 pessoas e 11 entidades. Ainda em Julho, a procuradora Aude Le Guilcher censurou a “escolha cínica” e o “jogo sinistro” da empresa, segundo o Le Monde, frisando que privilegiou “os interesses financeiros” à saúde dos seus clientes.

Mais do que 5 milhões de pessoas usufruíram do Mediator entre 1979 e 2009, tendo as primeiras suspeitas da existência de problemas secundários sido manifestadas em 1999, sobretudo de graves danos nas válvulas cardíacas e hipertensão arterial pulmonar.

O medicamento tinha como público-alvo diabéticos com excesso de peso, mas depois passou a ser adquirido por pessoas saudáveis enquanto regulador do apetite. É por esta razão que grande parte das pessoas que testemunharam no tribunal sobre o impacto do Mediator eram mulheres.

“Disseram-nos que o medicamento era extraordinário. Perdi dez quilos no primeiro mês”, como referiu Stephanie, um dos 6500 requerentes no processo, citada pela France 24.

Foi em 2007 que o primeiro alarme foi lançado em França, por uma especialista em pneumologia, Irène Frachon, dois anos antes da retirada do medicamento. Em Portugal foi também nesta altura que o medicamento saiu do mercado, mas especialistas dizem que o produto nunca teve grande sucesso entre o público português.

Antes de 2009 já Espanha e Itália tinham tirado o produto do mercado. O Reino Unido e os Estados Unidos nem chegaram a vendê-lo.

Texto editado por António Saraiva Lima

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