Será isto eugenia?

Eu gostava de ter uma vida normal, com escolhas normais e oportunidades normais. Gosto muito de contribuir para a sociedade, faço-o com gosto e, normalmente, não me importo de usar as minhas deficiências para isso. Mas é tudo. Porém, preferia não o fazer.

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Jacek Dylag/Unsplash

Ao ler o artigo da colunista do PÚBLICO Cármen Garcia, Todos diferentes, que subscrevo – gosto bastante de ler os artigos desta colunista , achei que faltava um “mas”. Um “mas” vindo de uma pessoa diferente, como eu. Diferente, leia-se deficiente. Escrevo este texto sob esteróides em sequência de uma neurocirurgia, executada na segunda-feira à tarde e com alta na quarta de manhã – os tais esteróides que fazem bem à inflamação causada pela covid-19. Sou multideficiente e, aos 37 anos, estou longe de achar que a minha vida é um fracasso, apesar de todo o trabalho extra que tenho tido e de várias expectativas esboroadas. Tento dar valor ao que tenho e ser agradecido às pessoas que me têm ajudado. Tento divertir-me sempre que acho que vai ser possível e não prestar demasiada atenção a coisas que acho que não valem apena. Contudo, se soubesse de antemão o que ia ser a minha vida, dificilmente teria adquirido bilhete. Considero que o “sucesso” não me compensou o transtorno, pelo menos até hoje.

Existem doenças genéticas, como a minha, e que podem ser herdadas, também como a minha. Para algumas já existem testes genéticos pré-implantação. Se se suspeita que uma patologia, ainda para mais “pesada”, pode passar para a geração seguinte. Considero do mais profundo bom senso usar os meios ao dispor para evitar que tal aconteça. Não se pede para nascer. É controverso pedir para morrer.

Eu gostava de ter uma vida normal, com escolhas normais e oportunidades normais. Gosto muito de contribuir para a sociedade, faço-o com gosto e, normalmente, não me importo de usar as minhas deficiências para isso. Mas é tudo. Porém, preferia não o fazer. E que ninguém se atreva a dizer que estou neste estado para glorificar o que quer que seja. A dignidade, que prezo muito, é um bem escasso e que se pode esboroar com grande facilidade. Quando se é, de alguma forma, mais frágil, a hipótese de isso acontecer é gigante, e isso, para mim, é uma aflição constante, algo que dispensava completamente.

A nossa matriz etológica, por melhor que seja a nossa educação, cedo ou tarde, acaba sempre por se mostrar, mostra-me a minha experiência pessoal, que bate certo como o apresentado por Irenäus Eibl-Eibesfeldt. Com mais ou menos educação, a competição está subjacente nas interacções humanas e, sem surpresa, na maior parte das vezes quem ganha é o menos frágil. O nosso sentido de pertença, que potenciará as nossas apetências gregárias, desencadeia respostas psicológicas e comportamentais automáticas discriminatórias – que urgem combater. Conjecture-se, então, sobre as dificuldades de singrar de uma pessoa diferente, acrescido da frustração desencadeada pela, também natural, compaixão. Compaixão essa que é potencialmente enganadora e frequentemente detectável em primeiros contactos entre pessoas.

É importante explicar que também sinto compaixão por outras pessoas com problemas de saúde, é uma reacção emocional. A par disso, também não culpo nenhum dos meus progenitores. Nem quem tinha esta maleita o sabia, nem os testes existiam na altura. Mas, se fosse agora, a situação poderia ser bem diferente.

Fica o meu sério apelo a quem quiser ter descendência: se desconfiar que lhe pode transmitir algum achaque, por favor procure aconselhamento genético. Existe no Serviço Nacional de Saúde.

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