O operariado do teletrabalho

O teletrabalho não deve ser visto como uma mera mudança de local de trabalho. É uma verdadeira mudança de paradigma, com as profundas transformações a que qualquer mudança de paradigma convoca. Tentar apenas adaptar o regime vigente a essa nova realidade será um erro e uma oportunidade perdida.

O texto recente da economista Susana Peralta suscitou muitas reacções, talvez pela forma despudorada com que chamou os teletrabalhadores bem postos na vida de “burgueses do teletrabalho”, os quais, exactamente por não terem perdido rendimento durante a crise, deveriam ser onerados com um imposto extraordinário que ajudaria a colectividade, sobretudo os mais necessitados, nestes momentos difíceis que atravessamos Não sou economista nem tenho competência para me pronunciar sobre a bondade de uma medida desse tipo, mas sou advogado laboralista, a quem interessa reflectir sobre as condições dos muitos milhares de trabalhadores que, em resultado directo da pandemia, passaram a desempenhar as suas funções a partir de casa ou de outro local que não o habitual.

Existirão dois tipos distintos de situações: aquelas em que as entidades empregadoras, findo o confinamento e resolvida a pandemia, quererão os trabalhadores de volta ao local de trabalho originário e aquelas para as quais esta nova realidade se tornou definitiva. Ora, se no primeiro caso, a situação, por muito duradoura que seja, será sempre transitória e, nesse sentido, mais ou menos suportável colocando desafios que são passageiros, já no segundo não é assim, devendo o legislador regulá-la bem e rapidamente, sob pena de corrermos o risco de termos um novo tipo de trabalhadores-operários presos nas suas próprias casas, com direitos diminuídos e, o que é mais grave, com poucos ou nenhuns meios de prova quanto aos mesmos.

O regime jurídico actualmente existente que data do início do século parte de dois pressupostos básicos que são (i) a transitoriedade da prestação do teletrabalho e (ii) a voluntariedade do teletrabalhador. Na realidade, este regime foi desenvolvido avant la lettre, numa altura em que, estatisticamente, o número de situações de teletrabalho era menos do que residual. Basta ler-se os poucos artigos do Código do Trabalho para se concluir nesse sentido. Simplisticamente, o regime foi, pois, pensado para situações em que, mais do que a vontade do empregador, era a do trabalhador que contava, podendo, assim, este desenvolver temporariamente a sua actividade no conforto de casa. Porém, fruto das modificações drásticas que a pandemia trouxe, a realidade presente veio demonstrar que o que foi pensado num certo contexto tem hoje uma aplicação prática muitíssimo deficiente, as mais das vezes em prejuízo dos próprios trabalhadores, deixando um enorme vazio legal que tarda em ser preenchido.

Não falando sequer do enorme problema que muitas vezes resulta da convivência entre teletrabalhadores e suas famílias (sobretudo quando existem várias gerações a coabitar no mesmo espaço) e que, na prática, impede objectivamente a realização do trabalho de uma forma satisfatória, coloca-se um sem-número de questões no âmbito da prestação do teletrabalho, dentre as quais destaco apenas algumas a título de exemplo: como compaginar o teletrabalho com horários rigidamente definidos (picar o ponto); como assegurar o cumprimento das normas relativas às condições de trabalho e à segurança e saúde no trabalho; como definir o trabalho suplementar e o trabalho nocturno; como tratar as múltiplas implicações decorrentes do conceito de local de trabalho sobretudo para efeitos de deslocações; qual o âmbito da cobertura dos seguros de acidentes de trabalho; como definir o regime das faltas e das incapacidades temporárias para o trabalho; como tratar as questões decorrentes dos instrumentos de trabalho necessários à execução das funções contratadas; como considerar as despesas acrescidas que os trabalhadores têm pelo facto de desempenharem as suas funções em casa quando, de outro modo, estariam nos locais de trabalho detidos pelo empregador. Existe, de facto, uma miríade de questões que decorre desta realidade e que não encontra uma resposta ou encontra uma resposta muito deficiente à luz da lei vigente.

Por outro lado, o teletrabalho veio acentuar o lado menos humano da prestação do trabalho. Ao desaparecer da vista do empregador, tornando-se desse modo quase imaterial, mais do que nunca passarão a contar os resultados apresentados pelo profissional, em detrimento da sua própria condição como pessoa e trabalhador. Tenderão a ser secundarizadas situações que, no âmbito de um regime presencial, seriam levadas em conta: problemas pessoais ou familiares, alguma doença não impeditiva da prestação do trabalho, um simples mau humor decorrente de um qualquer episódio sucedido com a pessoa trabalhador. Tudo coisas que num ambiente físico enformam a prestação do trabalho e que tendem a ser secundarizadas ou invisíveis no âmbito do teletrabalho, o qual irá, tendencialmente, sobrevalorizar os resultados apresentados em detrimento de tudo o resto. O tão famoso delivery, como a burguesia teletrabalhadora gosta de chamar, ganhará ainda mais protagonismo. Ora, não creio que situações em que os teletrabalhadores se encontrem desprotegidos quanto a um feixe importante dos seus direitos constituam um ganho para a sociedade, sequer para os empregadores que, se o regime jurídico actual não for modificado, verão decerto aumentar o absentismo, os incumprimentos e a litigiosidade laboral.

O teletrabalho pressupõe um grau elevado de maturidade de ambos os lados da relação que temo não esteja presente em parte importante das situações laborais existentes no nosso país. Para que o teletrabalho possa ser implementado com sucesso e como modelo verdadeiramente alternativo ao modelo até aqui vigente, é necessário que exista confiança mútua entre empregadores e trabalhadores, é necessário que o modelo do gato e do rato em que assenta alguma parte das relações laborais, no âmbito das quais ambas as partes estão permanentemente a ver quando é que “caçam” a outra, deixe de persistir e dê lugar a um modelo assente em responsabilidade e confiança. No entanto, para que assim seja, é preciso que quem define a forma como o trabalho é prestado – o empregador – dê sinais dessa responsabilidade e se preocupe em assegurar condições aos teletrabalhadores para poderem desempenhar convenientemente as suas funções, tratando-os não como meros instrumentos para a obtenção de resultados, mas como verdadeiras pessoas que, não obstante não estarem presentes fisicamente nas organizações, continuam com as suas vidas pessoais – e agora também com o seu próprio contexto residencial – a enformar a vida profissional e os resultados que são chamados a atingir.

Efectivamente, o teletrabalho não deve ser visto como uma mera mudança de local de trabalho. É uma verdadeira mudança de paradigma, com as profundas transformações a que qualquer mudança de paradigma convoca. Tentar apenas adaptar o regime vigente a essa nova realidade será um erro e uma oportunidade perdida. E, mais preocupante, será dar um sinal a todos os actores laborais – empregadores e trabalhadores – de que não é preciso evoluir na forma como se encaram mutuamente. O arrojo, simultaneamente necessidade, seria inovar legislativamente, pensando em soluções novas para novos problemas. Há, aqui e agora, a oportunidade de se dar um salto qualitativo importante. Não perder essa oportunidade é, antes de mais, uma responsabilidade de quem nos governa, através da definição de um quadro legal claro, seguro e decorrente de uma profunda reflexão. A ver vamos o que sai do que está a ser burilado.

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