Um Atlas moral

António-Pedro Vasconcelos é livre de dizer o que pensa sobre a direita: a que existiu, a que existe, a que governou e aquela com que brinca na casa de bonecas que é a sua cabeça. Mas o que nos apresenta não deixa de suscitar estranheza.

Não há fome que não dê em fartura. A Alemanha carrega na sua história um só Auschwitz, chega e sobra para lhe envenenar a vida. Funcionou, muito ironicamente, como uma eleição para o mal, eleição essa a que renunciaria de bom grado. Invejosos, sabe Deus de quê, alguns em Portugal também querem ter o seu. Já têm vários, aliás. Abrindo afanosamente o caminho para o pódio do genocídio, o antigo ministro da Cultura, Luís Felipe Castro Mendes, na edição em linha do Diário de Notícias, de 27 de Abril de 2018, emitira a opinião de que a Fortaleza de Peniche tinha um valor “na memória nacional comparável ao campo de concentração de Auschwitz enquanto lugar de práticas de sofrimento devido à repressão do anterior regime”. Provavelmente alertado por uma pessoa dotada de um elementar senso comum e com a instrução primária completa, o poeta fez remover uma tal pérola do sítio do jornal. Teria sido uma boa vacina. Não foi.

Recentemente, em artigo no PÚBLICO, António-Pedro Vasconcelos (APV) subiu a parada. Afirma, com sofisticada sensibilidade histórica, sobre o salazarismo que se tratou de “um Regime que construiu o Tarrafal em Cabo Verde, à imagem de Auschwitz”. O campo de Tarrafal foi construído em 1936, Auschwitz foi criado em 1940. Na colónia penal do Tarrafal morreram 37 pessoas, e em Auschwitz quantas foram exterminadas? O “homem de cultura”, como reza a expressão consagrada e consagrante, de datis non curat. Será lapso, será ignorância? Ignorância não é, não pode ser. A hipótese do lapso, por sua vez, é supérflua, dado o argumento elaborado por APV. Quando muito alteraria a ordem dos factores, uma vez que o raciocínio não passa da velha reductio ad hitlerum, numa forma supinamente sonsa. O objectivo, num texto sobre a direita portuguesa passados 46 anos do 25 de Abril de 1974, é estabelecer a ligação entre a direita e o nazismo. A tratar-se de lapso, seria requerido pela economia interna do texto. Encavalitada na execração universal do nazismo, a má fé da patifaria intelectual (e moral; nunca andam muito longe uma da outra) revela-se no recurso sem pejo ao cheque em branco da shoah – é a âmbula sem fundo aonde vai buscar com que se besuntar de superior legitimidade.

Mas legitimidade para que? APV, democrata esturrado, sente-se inquieto com a “desagregação dos partidos tradicionais da direita”. Ora, esses partidos, maxime o PSD, são um repositório de vícios e coito de malfeitores, de Cavaco Silva (um cripto-fascista) a Passos Coelho (um ultra-liberal antipatriótico), sem esquecer Durão Barroso (um belicista lacaio dos EUA). O cineasta não poupa nas acusações. Em todos eles vislumbra apenas perigosos deméritos. Ainda assim, aflige-se. Fica-lhe bem. Ou talvez não. A direita que governou o país, a direita eleita pelo povo, não serve, não é a direita de que o país precisa. Com um sagaz instinto democrático respeitador da espontaneidade social e uma não menos notável independência de espírito,  APV diz tudo numa frase: a direita que faz falta é uma “direita que consiga fazer o que fez a esquerda nos últimos anos, com os governos de António Costa”. Afinal era isto: a direita tem de ser a esquerda, e a esquerda é António Costa.

O cineasta é livre, ça va sans dire, de dizer o que pensa sobre a direita: a que existiu, a que existe, a que governou e aquela com que brinca na casa de bonecas que é a sua cabeça. O que nos apresenta não deixa de suscitar estranheza. Tudo começa em Auschwitz e acaba em António Costa. Foi para isto que APV conjurou os crimes do nazismo, imputou-os ao Estado Novo, proclamou-se guardião do bem e da memória e vestiu a pele de profeta morigerador. É um caso inicial, inteiro e límpido, de um vampirismo que não se coíbe de instrumentalizar os mortos de Auschwitz, que tenta pôr às costas o cúmulo do horror, imaginado no conforto do lar. A um tal Atlas moral tudo é permitido, até a mentira. Sobretudo a mentira.

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