Partilhar informação honesta sobre drogas diminui os riscos

Queremos que os nossos filhos tenham acesso a informação fidedigna sobre os riscos reais do consumo de drogas. E se, mesmo assim, decidirem consumir, que possam saber que a substância que estão a consumir é aquela que realmente esperam, e não um adulterante mais tóxico e potencialmente fatal.

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LUSA/ENNIO LEANZA

No dia 3 de Dezembro de 2014, Sarah e Ray Lakeman receberam uma notícia que nenhum pai ou mãe deveria receber: os seus dois filhos, Jacques (20 anos) e Torin (18 anos) foram encontrados mortos num quarto de hotel no Reino Unido. Os dois jovens tinham viajado até Manchester para assistir a um jogo de futebol e Torin, estudante de física, comprou MDMA (ecstasy) na internet. Nenhum dos dois tinha qualquer experiência com a substância, nem informação sobre a dose que poderia tomar. Quando os seus corpos foram encontrados, descobriu-se que tinham ingerido uma quantidade cinco a seis vezes superior a uma dose potencialmente letal.

No meio do turbilhão de emoções que uma tragédia desta dimensão traz a uma família, Sarah e Ray tomaram uma decisão: iniciar uma campanha pela introdução de políticas públicas de redução de riscos no Reino Unido e lutar pela regulação das drogas. “Isto tem de parar, mas não vai parar apenas por dizermos aos jovens para não o fazerem. Se isso fosse possível, os meus filhos estavam vivos – assim como dezenas de outras pessoas”, disse Ray. A luta destes pais é pela disponibilização de informação honesta, não moralista e objectiva científica sobre drogas que permita aos/às jovens tomarem decisões informadas e reduzir os potenciais risco dos seus consumos. Hoje em dia, as mortes relacionadas com MDMA acontecem essencialmente devido ao consumo de quantidades excessivas da substância, maioritariamente por falta de informação.

O Reino Unido é um exemplo evidente das consequências do proibicionismo. A introdução de pastilhas com doses elevadas de MDMA nos últimos anos, aliada a um conservadorismo das políticas de drogas, fez disparar as mortes por overdose relacionadas com esta droga. O número de mortes por ano aumentou de cerca de 50 em 2015 para 90 em 2019. Contudo, quando tomado com certas precauções, o MDMA é uma substância relativamente segura. Segura o suficiente para a autoridade americana do medicamento, a conhecida Food and Drugs Administration, considerar o MDMA breakthrough therapy (terapia inovadora) no tratamento de condições como o stress pós-traumático. Isto mostra-nos que é possível criar condições em que o consumo de MDMA apresenta um risco baixo, e que as mortes estão mais relacionadas com as circunstâncias (doses elevadas, ambientes muito quentes, misturas com outras drogas) do que com a toxicidade intrínseca da substância. Hoje sabemos o quão importante é, quando se consome, a escolha de ambientes arejados, a hidratação ou não consumir mais 125 mg de MDMA numa mesma noite ou sessão de consumo. A Kosmicare, organização da qual fazemos parte, tem trabalhado no sentido de promover discussões honestas e de base científica sobre drogas.

Através de um co-financiamento da Câmara Municipal de Lisboa e o SICAD (Ministério da Saúde), disponibilizamos um serviço de análise de substâncias (drug checking) que permite às pessoas analisar de forma gratuita e confidencial as suas drogas e saber, por exemplo, qual a quantidade de MDMA presente numa pastilha. Após um ano de trabalho em Lisboa, verificamos que a dose média das pastilhas vendidas como MDMA e que analisamos está muito perto dos 200 mg, uma dose bastante acima do limite recomendado. Encontrámos várias pastilhas com mais de 250 mg, o dobro do máximo recomendado. Esta informação é deveras importante pois, de acordo com o inquérito aos jovens portugueses realizado pelo SICAD no Dia da Defesa Nacional, sabemos que 7% dos/das jovens portugueses/as inquiridos/as aos 18 anos já tinham consumido algum tipo de anfetamina e/ou metanfetamina, MDMA incluído. É uma quantidade considerável de filhos/as, irmãos e sobrinhos/as de alguém.

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Não é só Portugal que percebe a importância deste tipo de serviços: em 2017, já existiam 35 em todo o mundo e 23 em países Europeus. Os serviços de análise de substâncias são considerados uma boa prática de saúde pelo Observatório Europeu das Drogas e Toxicodependências. A proibição das drogas empurra as pessoas que as consomem para a clandestinidade, adicionando muitos riscos ao consumo. Isto torna-se mais evidente em países onde as leis são mais conservadoras, como no Reino Unido onde, por exemplo, as pessoas são revistadas à porta das discotecas ou festivais, fazendo com estas tomem tudo o que têm consigo antes de entrarem, potenciando overdoses, muitas vezes letais. Onde o regime proibicionista é vigente (Portugal incluído), quem decide tomar drogas tem de assumir não só os potenciais riscos tóxicos de consumir as substâncias, mas também os riscos advindo destas serem ilegais. E esses, como se pode ver, poderão ser mais fatais que as próprias drogas.

Mas analisar as drogas e informar as pessoas funciona?
O que funciona ou não, no que diz respeito a informações na área da saúde, ainda é um desafio. Para todos nós, mais evidente agora que atravessamos esta pandemia e vemos as autoridades a mudar a estratégia de comunicação frequentemente. No entanto, temos consistentemente avaliado o impacto do trabalho da Kosmicare, ou seja, se a informação influencia as pessoas que frequentam o nosso serviço. Em conjunto com a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto estamos a estudar os comportamentos das pessoas que utilizam o nosso serviço após receberem o resultado das análises. Os resultados do serviço que prestamos em festivais indicam que mais de 90% das pessoas, após receberem um resultado que não estavam à espera (por exemplo, uma substância diferente da que era esperada), referem que não consumiu. Ainda, uma maioria de pessoas, mesmo as que têm o resultado que consideram ser “esperado”, referem que vão adoptar medidas que diminuam os riscos do consumo (por exemplo, tomar uma dose muito inferior quando a pastilha tem quantidades elevadas de uma determinada substância).

Sabemos também que a maioria das pessoas que procura os nossos serviços são pessoas com educação superior e que estudam ou trabalham. E que, de acordo com o estudo do impacto do confinamento devido à covid-19 (de Março até Maio 2020) feito pela Kosmicare, a maioria das pessoas reportou ter reduzido o consumo de psicoestimulantes, que normalmente fazia em conjunto com amigos/as em festas. Este é um dado que vai no seguimento de outros estudos já feitos em Portugal, onde se refere que a maioria do consumo de drogas é não-problemático, ou seja, é auto-regulado pelas pessoas que ponderam, com base numa série de factores, os riscos e benefícios do seu consumo antes de tomarem ou não a decisão de consumir. Um desses factores é a informação disponível. Se a informação é fraca, o risco de a decisão também o ser aumenta consideravelmente.

“Todos os outros aspectos das nossas vidas são governados pela tentativa de tornar as coisas o mais seguras possível. A única coisa com que não fazemos isso são drogas”, diz Ray Lakeman numa entrevista ao The Guardian. Após 50 anos de proibição das drogas, o consumo de drogas não diminuiu, todos os anos o número de pessoas que consome drogas aumenta, a proibição só tornou o consumo ainda mais perigoso. A guerra às drogas foi perdida.

Nós, para além de integrarmos a equipa da Kosmicare, somos também pais e mães. O mundo que queremos para os nossos filhos quando crescerem é um lugar onde eles não irão morrer de overdose na primeira vez que experimentam uma substância. Queremos que tenham acesso a informação fidedigna sobre os riscos reais do consumo de drogas. E se, mesmo assim, decidirem consumir, que possam saber que a substância que estão a consumir é aquela que realmente esperam, e não um adulterante mais tóxico e potencialmente fatal.

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