A foto, o facto e a opinião

O principal mérito de uma foto não é ser inédita; é documentar com rigor um determinado acontecimento, situado no seu contexto, e sem deixar para trás outros valores do jornalismo.

Está em causa a fotografia, publicada na primeira página (PÚBLICO, 14 de Março de 2021), do cadáver a arder de um negro morto não se sabe em que circunstâncias nem por quem, rodeado por um grupo, em “pose guerreira”, de militares portugueses e de membros da milícia civil OPVDCA (Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil de Angola). Um dos militares empunha uma pistola Walter, o que indicia a presença no grupo de um oficial. A legenda da foto esclarece que ela é inédita e que foi captada em Angola, em 1964. O PÚBLICO justifica o destaque que lhe é dado pelo facto de, no dia seguinte, 15 de Março, fazer 60 anos do início da revolta no norte de Angola, em 1961. Tratando-se de assinalar uma efeméride, a escolha editorial do PÚBLICO não foi feita sob pressão da actualidade.

Esta publicação originou observações e protestos de leitores. Ignoro os que entraram na área do processo de intenção e do insulto fácil, para reter apenas dois.

Escreve o leitor José Pinto: “Aí o jornal falhou redondamente porque não foi imparcial. (…) Excessos como o mostrado na fotografia foram praticados por ambos os lados do conflito e continuadamente depois, durante a guerra civil que se seguiu à independência. (…) A decisão do director do jornal de publicar aquela fotografia na primeira página é um claro escolher de um dos lados da barricada por parte do jornal.”

O leitor José Orlando Martins confessa que ficou “triste e decepcionado com a imagem chocante publicada na capa do jornal”. Na opinião do leitor, o PÚBLICO escolheu a foto “que mais compromete os portugueses”. “Com ela querem reescrever a história, mas podiam publicá-la no caderno P2 juntamente com outras das atrocidades cometidas pelos movimentos de libertação. Fiquei chocado com o PÚBLICO que eu assino.”

Foto
A foto que fez a primeira página da edição de 14 de Março de 2021 do PÚBLICO ANTT, PIDE, Delegação de Angola/Imagem cedida pelo ANTT

Encaminhei as observações destes leitores para o director Manuel Carvalho, que explica assim a decisão tomada pelo jornal:

“A escolha das fotografias para o trabalho alusivo aos 60 anos do início da Guerra Colonial mereceu um amplo debate interno entre directores e editores do jornal. Porque sabíamos que em causa estava uma matéria sensível, procurámos encontrar uma solução o mais equilibrada possível. Mesmo que não estivesse em causa da nossa parte qualquer tentativa de esconder a violência que a guerra sempre contempla, usámos como critério a existência de fotografias nunca publicadas e as imagens que davam conta das atrocidades cometidas por ambas as partes. Nas páginas do interior do P2, é possível constatar esse esforço de equilíbrio, havendo par a par fotografias das vítimas dos ataques da UPA e imagens das vítimas das represálias que se lhe seguiram.

“Quanto à fotografia da capa, a escolha fez-se de acordo com o seu potencial gráfico e com a preocupação de não expor nenhum elemento de violência gratuita e explícita ao primeiro olhar. Havia uma fotografia do mesmo momento em que essas condições não se verificavam – o corpo entre as chamas era mais facilmente perceptível. No caso da escolha para a primeira página, essa realidade brutal da guerra estava exposta, mas sem o mesmo impacte.

“Pretender que essa escolha é uma denúncia dos militares portugueses e, por consequência, um branqueamento ou tolerância da violência dos independentistas não tem cabimento, a menos que se partilhe a ideia de que um jornal tem por dever para com os seus leitores expor a barbárie dos ‘outros’ e temperar a ‘nossa’. Não é essa a prática do jornalismo independente nas sociedades livres. Se assim fosse, nunca os grandes jornais americanos teriam colocado nas suas primeiras páginas as fotos de Nick Ut na estrada de Trang Bang, que deram um enorme contributo para uma mudança da opinião pública em relação à brutalidade da guerra do Vietname.”

Sintetizando a resposta do director Manuel Carvalho: o PÚBLICO procurou uma solução editorial “o mais equilibrada possível”; a escolha da fotografia, inédita, fez-se “de acordo com o seu potencial gráfico”; tanto se expôs a barbárie dos “outros” como a “nossa”. Por fim, o director remete para as célebres fotos de Nick Ut, “que deram um enorme contributo para uma mudança da opinião pública em relação à brutalidade da guerra do Vietname”.

Uma coisa é clara: o jornalista tem o dever de divulgar, com maior ou menor pudor, os documentos que denunciem quaisquer actos de barbaridade e, inclusive, os cometidos durante uma guerra – qualquer guerra.

Dito isto, e a propósito do caso concreto em análise, o provedor tem mais dúvidas que certezas. Desde logo a questão da identidade dos militares e dos civis portugueses que estão na foto. Na da primeira página, propositadamente desfocada, eles não são identificáveis. Aponta-se o acto e não os seus autores. Mas a identidade deles é revelada na fotografia, não desfocada, que surge no P2 [1]. O que leva o provedor a interrogar-se: qual é a fronteira entre a denúncia de um acto bárbaro, e a condenação na praça pública de homens que ainda estarão vivos? Em que contexto foi tirada a fotografia e quais os seus antecedentes? Foi no decorrer de uma operação militar estruturada ou no quadro de um gesto tresloucado cometido por um grupo de jovens embriagados pela guerra (o que não justifica o imperdoável, mas pode ajudar a explicá-lo)?

As dúvidas do provedor estendem-se, depois, a várias outras questões: não se teria conseguido um melhor equilíbrio editorial publicando, na primeira página, que tem um bem maior impacto que as outras, duas fotografias que ilustrassem as barbaridades cometidas pelas duas facções? Ou não publicando qualquer fotografia? Por outro lado, perante uma opinião pública ainda com a sensibilidade à flor da pele em relação à guerra, era o potencial gráfico da fotografia que devia prevalecer? Não deveria, antes, ter sido o critério do rigor cronológico, na medida em que o PÚBLICO assinalava os 60 anos do início dos massacres no Norte de Angola, levados a cabo pela UPA, em Março de 1961, e não os cometidos pelo Exército Português, em 1964, ano em que a foto foi tirada? E, por fim, se a célebre foto de Nick Ut, em 1972, contribuiu indiscutivelmente para alertar a opinião pública norte-americana para uma das facetas da guerra então em curso no Vietname, para que é que contribui a foto de 1964 publicada em 2021? Que opinião pública se pretendeu mobilizar e para quê, quando a foto, apesar do seu ineditismo, nada traz de novo ao que já se sabia sobre as barbaridades cometidas naquela guerra?

O provedor baseia a sua opinião nos textos que regem a actividade dos jornalistas, em geral, e os do PÚBLICO, em particular, e ainda na sua experiência profissional. Esses textos – como, aliás, a literatura de referência que consultei – não são esclarecedores em relação a casos semelhantes, deixando-os ao critério editorial do jornal, que é da exclusiva competência da Direcção. Daí que, não devendo atribuir à minha sensibilidade uma importância que ela não tem, me sobrem muitas interrogações para poucas respostas, numa matéria em que os leitores têm o direito de esperar mais e melhor do seu provedor. Lamento desiludi-los, mas não seria honesto da minha parte opinar ex cathedra quando me faltam certezas em que possa fundamentar a minha opinião.

[1] Nas páginas 5 e 6 do P2 há uma foto de corpos decapitados, com uma legenda dúbia, a que falta informação básica – quem são as vítimas e quem foram os carrascos? –,​ contrariando o que está estipulado no Livro de Estilo do PÚBLICO.

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