Os advogados estagiários merecem respeito

Os tribunais estão fechados, os estagiários estão impedidos de aceder à barra para completar as suas intervenções ou assistências, há mais de um ano que sentem dificuldades em entrar em salas de audiências mesmo no período entre confinamentos e a resposta da Ordem dos Advogados foi sempre tardia e errática.

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Rui Gaudencio

São muitos os relatos que me têm chegado, por parte de colegas estagiários, que evidenciam, uma vez mais, a necessidade de uma profunda reflexão sobre o papel da Ordem dos Advogados (OA) no acesso à profissão, na prossecução dos cursos de acesso à advocacia e na defesa da dignidade da classe. Desengane-se quem ache que a dignidade da advocacia se almeja protegendo o status quo perpetuado pelas grandes sociedades de advogados e pela tentativa reiterada de elitização de uma profissão já há muito proletarizada. A dignidade da advocacia começa, inevitavelmente, com o tratamento dado aos advogados estagiários, núcleo fundamental para o desenhar da advocacia do futuro e que tem sido, consecutivamente ignorado, desprezado e desconsiderado.

Não são novos os problemas a que os advogados estagiários estão sujeitos para conseguirem aceder à profissão e já por aqui escrevi sobre muitos deles, desde os preços pornográficos para a inscrição de um licenciado em Direito num curso de acesso à Ordem dos Advogados, até ao longo estágio predominantemente gratuito que são obrigados a realizar. Não obstante, a pandemia do covid-19 veio também agravar problemas que já existiam no relacionamento entre os advogados estagiários e a OA, nomeadamente entre aqueles e os conselhos regionais da Ordem, organismos mais próximos dos advogados estagiários e onde estes procuram respostas e soluções que raramente encontram.

Não faltam exemplos da desconsideração a que os advogados estagiários estão sujeitos no decurso do seu trajecto para a entrada na profissão e todos contribuem para a não-dignificação da classe e para o contínuo descrédito que vai ganhando aos olhos da sociedade portuguesa. O curso de estágio de 2020 deveria ter começado a leccionar as formações adstritas à primeira fase do estágio no início do mês de Janeiro em todo o país. Contudo, no Conselho Regional de Lisboa as aulas apenas começaram no dia 22 de Março, tendo os horários sido enviados no dia 19 do mesmo mês. Tal situação deveu-se, segundo o Conselho Regional, à falta de formadores e ao concurso para o recrutamento dos mesmos. Ainda assim, os colegas foram prejudicados por um atraso cujos motivos lhes foram e são completamente alheios e, como se coisa pouca fosse, com a necessidade de recorrer a aulas por via remota os estagiários são tratados, desde logo, com presunção de culpa, ou seja, são obrigados a ter, durante as sessões, as câmaras ligadas, registar a presença no Zoom três vezes por sessão e, o mais grave, terão de registar presença cada vez que um formador o disser, de forma aleatória.

Trata-se de uma conduta grave por parte da OA que, ultima ratio, é a instituição que tem a responsabilidade de garantir a dignidade de tratamento aos colegas estagiários. Ignorando a OA o facto de existirem colegas com filhos em casa com escola à distância e cujo serviço de Internet não garante a estabilidade da ligação, ou seja, existem colegas que têm a necessidade de ter a câmara desligada sob pena de não ter largura de banda suficiente para ouvir e se fazer ouvir nas sessões. Acontece que tal situação não é permitida pela OA, ou seja, se os colegas desligarem as câmaras ou se, por algum motivo, não se conseguirem fazer ouvir, mesmo estando presentes nas sessões e fizerem reconhecer através do registo das presenças terão falta injustificada. É este o tratamento dado pela Ordem dos Advogados aos advogados estagiários que pagam os seus cursos a preço de ouro e que não vêem nada mais, da parte da Ordem, para além de entraves no acesso à profissão.

São mais os exemplos que poderia elencar para ilustrar esta situação desprestigiante para a OA, mas fico-me por esta completa falta de responsabilidade social de quem não entende os vários contextos sociais que compõem a advocacia e o seu acesso. Já sabíamos há muito que a principal atribuição da OA é a limitação do acesso à advocacia, mas a pandemia veio dotá-la de mais instrumentos para levar a cabo com sucesso tal missão.

Os tribunais estão fechados, os estagiários estão impedidos de aceder à barra para completar as suas intervenções ou assistências, há mais de um ano que sentem dificuldades em entrar em salas de audiências mesmo no período entre confinamentos e a resposta da OA foi sempre tardia e errática. Não se sabe se há discussão sobre o assunto, de existem decisões para serem tomadas ou quando o irão ser. Os estagiários navegam à vista num barco que se afunda se lhes pedir licença. O excelentíssimo Bastonário tem aqui uma especial e acrescida responsabilidade, porque ao invés de andar preocupado em utilizar a OA para vincular os seus artigos de opinião pessoal, deveria cumprir o afirmado vezes sem conta na campanha eleitoral que o elegeu e virar as suas atenções para os reais problemas da advocacia.

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