A crise da esfera pública e do pensamento crítico

Na era digital da convergência tecnológica, tenhamos consciência de que a nossa rastreabilidade será explorada exaustivamente por mestres-algoritmos em ordem a produzir padrões supra individuais que antecipem, orientem e condicionem o nosso comportamento.

Uma das facetas da transição digital é a criação de mais tecnologias imersivas, intrusivas e invasivas. Estamos, portanto, no limiar de uma era misteriosa, na senda de um admirável mundo novo, em viagem para o universo do ciberespaço e da cibercultura. Ao mesmo tempo, atravessamos uma crise séria das instituições de representação e mediação da esfera pública. Somos cidadãos aumentados pelo uso de inúmeros dispositivos tecnológicos e digitais, mas não confiamos na intermediação das instituições convencionais e não existe espaço-tempo de qualidade para a reflexão e o pensamento críticos. É o tempo da governação da sociedade intermediada pelos algoritmos das plataformas digitais, mas, também, o tempo da radicalização, da violência, das bolhas tribais nas redes sociais e da polarização social. Vejamos alguns aspetos da transição digital e da governação algorítmica sobre a esfera pública e o pensamento crítico.

A crise do espaço público e do pensamento crítico

A sociedade da governação algorítmica promete-nos quase tudo por intermédio de um normativismo preditivo e prescritivo, ou seja, um comportamento padrão com menos incerteza e mais conformidade, seja lá o que isso for. Na sociedade automática e algorítmica renasce, assim, o sonho de resolver o problema da política e da deliberação pública pela tecnologia e pelo cálculo. As máquinas inteligentes substituiriam, no limite, as normas institucionais. Doravante, na sociedade da governação algorítmica, seremos, cada vez mais, cidadãos com duas faces (biface), isto é, cidadãos aumentados pelo uso de inúmeros dispositivos tecnológicos e digitais​, mas, também, cidadãos condicionados e manipulados, por vezes, mesmo, idiotas úteis desses dispositivos em muitos processos de participação, deliberação e tomada de decisão.

Aqui chegados, não é indiferente o modo como o processo geral de digitalização irá decorrer, pois existe o risco real de uma mercantilização das opções e modalidades do negócio digital atropelarem e prevalecerem sobre o processo mais geral de literacia digital que, como sabemos, não se reduz ou confunde com a simples aquisição de gadgets e dispositivos tecnológicos. Se tal acontecer, se a desigualdade no acesso e na literacia digitais for uma realidade, assistiremos à redução e empobrecimento do espaço público e a uma verdadeira cacofonia nas redes sociais que prejudicarão, inelutavelmente, o desenvolvimento do pensamento crítico. O ruído constante no universo comunicacional em redor de notícias falsas e verdadeiras, meias verdades e pós-verdade diminuirá o espaço-tempo de reflexão e debate que são imprescindíveis para uma deliberação política de qualidade. Acresce que, a chegada em força da Internet dos objetos, da inteligência artificial e dos inúmeros interfaces da realidade aumentada e virtual empobrecerá ainda mais o espaço público e o pensamento crítico. De uma forma esquemática, vejamos algumas facetas desta crise da esfera pública e do pensamento crítico:

- Em primeiro lugar, o ponto de partida, os nossos dados pessoais: recolhidos em múltiplos dispositivos fixos e móveis, são objeto de uma filtragem e tratamento em grandes centros de dados por intermédio de protocolos e procedimentos matemáticos chamados algoritmos; o resultado desse processamento apresenta-se sob a forma de perfis e padrões de comportamento personalizados que são depois vendidos a empresas de marketing e publicidade ou diretamente às grandes empresas de distribuição e retalho;

- Em segundo lugar, a cultura de um “modelo extrativista com duas faces”: os cidadãos internautas, utilizadores de redes e plataformas, são presas fáceis de um modelo extrativista de acesso praticamente universal e gratuito onde todos somos produtores e fornecedores de uma gigantesca massa de informação pessoal, muita dela subliminar, num ambiente informacional vertiginoso e hipnótico, que tem tanto de benignidade como de toxicidade; estes mercados de duas faces, gratuitos a montante e pagos a jusante, são designados de “mercados biface” e são eles que proporcionam as receitas gigantescas às grandes plataformas digitais;

- Em terceiro lugar, a exuberância calculatória dos algoritmos: no plano cognitivo não interessa o contexto, a singularidade ou a significação dos dados recolhidos, ou seja, a nossa subjetividade não é tida em conta, não há lugar para a improvisação, somos editados pela governação algorítmica como um simples perfil, somos, digamos, coisificados; não há eventos, hipóteses sobre o real ou pensamento sobre a realidade, os dados são a matéria-prima e são eles a fonte e a origem da realidade; o que interessa é a calculabilidade desses dados brutos e a correlativa hiper indexação do indivíduo;

- Em quarto lugar, vivemos uma crise generalizada de representação, confiança e mediação, que é, também, uma crise de interpretação e leitura do mundo, se quisermos, uma crise da nossa verdade, que alguma literatura denomina de pós-verdade; a prevalência dos dados e a verdade estatística cortam o nexo de causalidade entre inteligência racional e emocional que, em si mesmo, informa o princípio geral da liberdade humana;

- Em quinto lugar, a sensação amarga de que experimentamos o princípio do fim do nosso universo comunicacional, ao trocarmos progressivamente o sistema operativo do nosso dispositivo alfabético, rico simbolicamente, por uma linguagem binária ultra simplificada e pobre simbolicamente que, mais uma vez, empobrece o princípio geral da liberdade humana;

- Em sexto lugar, a ubiquidade e o narcisismo digital não nos deixam comunicar, mas, apenas, transacionar: estamos demasiado distraídos com os brinquedos tecnológicos para dar atenção à comunicação simbólica; e sem comunicação simbólica não há antropologia sociocultural que resista, isto é, deixamos de produzir humanidade e uma verdadeira cultura de cidadania;

- Em sétimo lugar, no universo algorítmico somos uma espécie de cidadão aditivado: a sociedade algorítmica alimenta-se de um vasto ambiente informacional, da híper inteligência dos dispositivos tecnológicos e, obviamente, da adição digital provocada junto dos utilizadores que não percebem que o produto somos nós, tal é a ubiquidade e o narcisismo digital que nos mantêm como os idiotas úteis de serviço;

- Em oitavo lugar, os sensores algorítmicos são os olhos e os ouvidos do imperador: os sismógrafos que registam os nossos dados infra pessoais, uma espécie de guarda pretoriana avançada que atua em nome e benefício dos novos senhores do capitalismo digital e da governação algorítmica, uma nova estrutura de poder para gerir a incerteza e a insegurança, isto é, para manter a normalidade contra a liberdade e a espontaneidade, ao serviço de um novo poder;

- Em nono lugar, entre as normas das instituições e as prescrições das máquinas inteligentes, está aí a inteligência artificial para converter a inteligência racional dos humanos em inteligência estatística e matemática das máquinas inteligentes e os nossos comportamentos previsíveis em comportamentos preditivos e ditados pelos algoritmos; de resto, muitos serviços aspiram por estes padrões imparciais e objetivos para aumentar a sua autoridade e vigiar e punir;

- Em décimo lugar, onde há sensores há censores, isto é, se os idiotas úteis forem muito numerosos, como aliás se comprova com factos recentes, estarão reunidas as condições para lançar regimes autocráticos, iliberais e populistas; de resto, na governação algorítmica basta rodar os algoritmos e uma outra verdade ou a pós-verdade aparecem como por magia.

Notas finais

Nunca se falou tanto em transformação digital, plataformas digitais, aplicações, start up, big data e cloud computing, inteligência artificial, algoritmos e governação algorítmica. Ficamos, assim, com a sensação agradável de que há uma promessa que se quer cumprir, que estamos a cultivar um novo espaço público e a abrir um novo campo de possibilidades. Ao mesmo tempo, porém, há um lado mais furtivo e menos luminoso do problema que merece a nossa atenção, que procede por inversão dos termos da equação, onde os meios tomam conta dos fins e onde a inovação política e social corre mais lentamente e atrás da ambivalência da sociedade algorítmica.

Em resultado da transição e ambivalência da sociedade algorítmica, a esfera pública e o pensamento crítico assistem ao nascimento de uma nova cultura de regulação jurídico-política e jurisdicional e, também, à erupção de novas figuras e protagonistas: os reguladores, os auditores, os inspetores, as comissões de ética, os procuradores do interesse público e privado. É aqui que nós já estamos, quando se fala, por exemplo, de mercado único digital e contraordenações na área da concorrência contra as grandes companhias tecnológicas, mas, também, de regulamentos e diretivas europeias em matéria de serviços digitais, privacidade e proteção de dados pessoais.

Fica, pois, o aviso. Na era digital da convergência tecnológica, tenhamos consciência de que a nossa rastreabilidade será explorada exaustivamente por mestres-algoritmos em ordem a produzir padrões supra individuais que antecipem, orientem e condicionem o nosso comportamento. Além disso, não deixemos que a inteligência artificial tome conta da nossa inteligência racional, nem que a arte emocional das relações humanas seja trocada pela caricatura de uma bricolage social ou por uma bolha mais ou menos tribal nas redes sociais, enfim, vivamos a vida ao quotidiano nas nossas comunidades offline e sempre que necessário acionemos o direito de desligar.

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