“Chamar os bois pelos nomes” – Reflexões simples e talvez utópicas sobre a democracia do meu país

A nossa democracia foi-se falseando politicamente depois do 25 de Abril de 1974. Tirando o PCP, os partidos do nosso xadrez político têm-se desviado do seu sentido pretensamente originário.

Habituado ao linguajar do campo, ouvi sempre esta frase, que é o espelho da autenticidade das gentes rurais: “Chamar os bois pelos nomes.” Repito-a não por motivo da pandemia, que serve de texto e pretexto a quase todas as notícias e opiniões. Utilizo este dito popular porque julgo que ele se adequa ao tema de que há muito quero falar de forma despretensiosa, simples e directa, mas também utópica: a democracia portuguesa (e não apenas a nossa) e os nomes, a verdade e a mentira dos partidos que a compõem.

A nossa democracia foi-se, como é sabido, falseando politicamente depois do 25 de Abril de 1974 até agora, a ponto de, quando fez 40 anos (em tempo de troika e do governo neoliberal de Passos Coelho), a Associação que tem o seu nome ter publicado um cartaz, de Júlio Pomar e Henrique Cayatte, que representa um grande ponto de interrogação branco em fundo vermelho. Felizmente, manteve-se como democracia formal, mas não como democracia política e económico-social bem definida. Talvez hoje nenhuma seja, em qualquer país. Isto é: não é uma democracia de cidadãos, mas sobretudo de partidos, que devem e têm de existir, mas com um outro carácter, sem serem escolas de “carreirismo” (espécie de cursus honorum), que se inicia nos municípios (se não nas freguesias) e termina no Governo e no Parlamento, passando pelos diversos cargos que surgem pelo caminho. Esse defeito faz com que possa surgir, não uma nova forma de fascismo — sempre pensei, como historiador, que o “fascismo”, ao contrário de Umberto Eco, não é eterno, e se ajusta a uma época e até (perdoem o termo) a “ideais” e ideologias de um tempo —, mas outras novas formas igualmente perigosas, como é o “populismo”, que até agora se tem apresentado, e ainda bem, como uma realidade aparentemente estrangeira e em geral efémera, embora assim possa não ser no presente e no futuro.

Tirando o PCP, Partido Comunista Português, que se tem mostrado, para o bem e para o mal, igual a si próprio, como uma espécie de religião em que a fé supera as possíveis dúvidas, o certo é que os partidos do nosso xadrez político se têm desviado do seu sentido pretensamente originário, porque ora querem ser de “esquerda” sem o serem ou de “direita” sem o dever ser. Recordo aqui um debate para a Presidência da República entre Marcelo Rebelo de Sousa e André Ventura. Falando da “direita”, o candidato Marcelo, e agora outra vez nosso Presidente, dizia que uma coisa era a “direita social”, que representava, outra a “direita securitária” e “do medo”, que significaria o seu adversário. Na verdade, jamais Marcelo Rebelo de Sousa, como ex-presidente do PSD, se deveria considerar de “direita”, pois nunca um partido com esse nome, de profundas tradições sociais, se poderia assim entender.

O que quero dizer é que se o PS se tem de considerar de “esquerda” e afirmar como defensor de uma democracia social ou de um socialismo democrático, não muito longe disso, pelo menos no centro, numa tradição que (supõe-se) vem de Sá Carneiro, deveria andar o PSD — Partido Social-Democrata, saliente-se —, ainda que antes se tivesse chamado PPD (Partido Popular… Democrático). Considerá-lo e, sobretudo, considerar-se, de “direita” será alterar completamente o sentido das palavras e dos seus respectivos acrónimos. Por isso, sempre me espantou a acção neoliberal do PSD com os governos de Cavaco Silva, Durão Barroso ou Passos Coelho, também entremeada pelo governo de Sócrates, do Partido Socialista, que não andou muito longe dessa sede infindável de privatizações, ou da sua aceitação, em nome da livre concorrência. Vieram ao de cimo os interesses próprios do liberalismo capitalista, como sucedeu na Inglaterra, naturalmente com a conservadora Thatcher (influenciada pelos economistas americanos) e também, já de forma pouco autêntica (com o sofisma da “terceira via”), com o trabalhista Tony Blair. Este surto neoliberal — e há quem diga que “o neoliberalismo nunca existiu…” — fez com que eu e tantos portugueses tivessem dificuldade em votar no Partido Socialista, a que tive a honra de pertencer em momento difícil e inicial da nossa democracia.

Importa, pois, que alguns objectivos sociais que por vezes transparecem nas posições dos líderes socialistas e sociais-democratas (neste caso, que tanto deles se afastaram) se transformem em verdadeiros princípios de democracia social. Caso contrário, fala-se da “liberdade” como qualquer coisa que seja património dos partidos de “direita”, liberdade que, do ponto de vista político, não podemos perder, como dizia, num artigo do PÚBLICO, José Pacheco Pereira. Falo, e o meu colega, da liberdade como um direito político não individualista que tem como limite o “bem comum”, numa Democracia Social — cuidado com a designação de “Estado Social”, que afinal foi um dos slogans do fascismo e, por isso mesmo, também do marcelismo —, e não de uma liberdade económica que foi sempre, desde o início do liberalismo, uma concepção ambígua e aproveitada pelas forças privadas, que justificou afinal o desenvolvimento do capitalismo, que agora atinge limites (im)previsíveis e difíceis de contrariar.

Mesmo o CDS, com os seus líderes, como Portas, Assunção Cristas e agora com o jovem Francisco Rodrigues dos Santos, esqueceu afinal o sentido do seu acrónimo — Centro Democrático Social, do “centro” registe-se. É verdade que se lhe acrescentou o PP, Partido Popular, o que pode anteceder o populismo que por aí grassa, mas este foi também o nome do partido democrata-cristão de Itália, o que surgiu nos anos 90 e o de 1919, de Luigi Sturzo, que não se quis identificar com o liberalismo puro e se opôs corajosamente à ascensão do fascismo. Hoje o CDS esqueceu as suas origens de partido de “centro”, cristão social, que por certo pretendia ser quando era seu líder Freitas do Amaral (por isso veio a ser ministro do PS?), e é afinal tão populista que perde terreno em relação ao verdadeiro populismo.

“Chamem-se os bois pelos nomes” — os partidos devem seguir os seus princípios e os seus acrónimos. Deixem à “direita”, desde que não seja neofascista e racista (o que muitos duvidam), o populismo do Chega, do tal André Ventura, que é tudo e nada e de que se deve falar o menos possível, e deixem que ali também se coloque, embora com outro sentido, a Iniciativa Liberal, essa sim que deve, com as suas muitas directrizes, ser um partido liberal. E que à “esquerda”, além dos partidos referidos, onde o PCP se tem de manter e reafirmar eleitoralmente (uma saudação especial pelo seu centenário!), esteja o Bloco de Esquerda, formado afinal por aqueles que militaram sempre em partidos radicais ou os que perderam a esperança nos outros partidos ditos de “esquerda”. E… o Livre e outros movimentos que pretendem cumprir um calendário que é ou se considera de “esquerda”. Só que estes partidos não se deviam multiplicar e deveriam unir-se, o mais possível, em torno dos seus ideais, que deveriam ser mais debatidos. Mas estamos num tempo em que se perdeu o sentido crítico (não a vontade de tudo criticar, que é afinal uma variante de tudo aceitar), à “esquerda”, ao “centro” e à “direita”.

Falei apenas como Cidadão ou… como Político (palavras que têm a mesma origem etimológica, uma latina e outra grega). Se se quiser, no sentido “cosmopolita”, que significa afinal “cidadania no cosmos” mas com uma pátria e a sua identidade. E perdoem se não falei da covid… Se tivesse falado não diria nada acerca do vírus e do modo como dele devemos fugir, mas dos que a todo o custo, anonimamente, lutam para que a pandemia não se difunda ainda mais, dos infelizes que sofrem e dos oportunistas que dela se aproveitam. E dedicaria esse texto ao meu cunhado Ivo, que foi umas das suas vítimas.

Professor catedrático aposentado da Universidade de Coimbra e cidadão

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