As ovelhas e a Universidade do YouTube – defender o conhecimento, a racionalidade e a ciência

Criámos um modelo de sociedade que desvaloriza o conhecimento. Mais! Criámos um modelo de sociedade que valoriza a ignorância e a futilidade, a diversos níveis.

1. O ter uma opinião e o pensar criticamente

“Acreditas mesmo em tudo o que dizem estes tipos, só porque são especialistas no assunto? Não sejas ovelha! Informa-te e faz umas pesquisas!”

A frase acima é fictícia. Porém, é similar a largas dezenas de frases que se leem por esse mundo fora, em redes sociais, caixas de comentários de jornais, etc.

Para muitos, a própria frase não fará sequer sentido: em princípio, se alguém é – reconhecidamente –​ um especialista num assunto, é porque o seu conhecimento sobre ele é profundo. Daí que a única resposta possível à pergunta seja “sim, acredito no que me dizem os especialistas, precisamente porque o são. Percebem muito mais do que eu”.

Argumento de autoridade, berrarão alguns. Possivelmente. É verdade que a condição de “especialista”, bem como a titularidade de títulos e credenciais académicas, não garante automaticamente razão a uma pessoa, nem torna a sua opinião imune a erros, e muito menos indiscutível. Por outro lado, é preciso uma dose substancial de arrogância para se desvalorizar por completo a opinião de alguém que, amiúde, dedicou grande parte da vida ao estudo de um assunto. E esta última é uma atitude cada vez mais comum – também pela hipervalorização do “ser diferente”, uma forma de afirmação, e querer pensar de maneira diferente das “ovelhas”, dê por onde der.

O ser humano com bom senso e um mínimo de humildade sabe que o especialista não estará sempre certo, mas que o estará numa percentagem extremamente elevada dos casos. Sabe, sobretudo, que se a opinião do especialista pode, e deve, ser questionada, deve sê-lo por quem tem armas iguais às dele. E isto implica aceitar uma verdade, dura, que muitos hoje parecem ter dificuldade em compreender: há assuntos para os quais não somos qualificados para ter uma opinião. Ponto. E os das ciências naturais e a medicina são os principais exemplos, para quem não tem formação nestas mesmas áreas.

Muitas opiniões absurdas ou sem fundamento, quando rebatidas, geram do emissor a contra-resposta “É a minha opinião. Tenho direito a ela.” Este parece ser o moderno entendimento da ideia de liberdade de expressão: a Constituição confere-me o direito a ter uma opinião, logo devo ter uma opinião sobre tudo. Voltando ao nosso cidadão com bom senso e humildade, ele sabe que esta perspectiva está errada. Sabe que, apesar de ser bom pensar criticamente, convém que se tenha os elementos e o conhecimento necessários a essa tarefa. Sabe que para se pensar criticamente de forma adequada é preciso estar genuinamente bem informado, ou o pensamento crítico será, na hipótese mais benévola, estéril ou, na pior hipótese, perigoso e enganador.

Mas os aguerridos defensores do dever de ter uma opinião vão ainda mais longe: defendem que em democracia todas as opiniões têm o mesmo valor. Nada mais errado. A ideia de democracia não transforma a minha opinião sobre a velocidade da luz numa opinião de valor equivalente à de João Magueijo sobre o mesmo assunto. O resultado da conjugação da liberdade de expressão com a democracia não é a igualdade de valor de todas as opiniões. É o valor das opiniões ser reconduzido ao conhecimento (científico e empírico) que as sustenta. Em linguagem leiga: eu, jurista, posso discutir enfartes do miocárdio com o meu pai, cardiologista? Posso. Faço-o? Sim, na medida em que gosto de perceber o máximo possível sobre tudo. Mas a discussão ocorre entre pares? Tenho eu conhecimento para contestar as afirmações científicas? Tenho eu treino suficiente na leitura estatística para ter uma opinião mais do que meramente superficial sobre os dados? Claro que não.

Foi cunhada há pouco tempo uma palavra para descrever as pessoas que acham que os defensores da objectividade, da racionalidade e do conhecimento são ovelhas: agnorantes. Pessoas que juntam a arrogância à ignorância. Mais ainda, que são arrogantes na inversa proporção do seu conhecimento. A psicologia explica este fenómeno já há bastante tempo, através do efeito de Dunning-Kruger: há pessoas que são tão ignorantes que não têm sequer conhecimento suficiente para perceber o quão ignorantes são. Sempre houve e sempre haverá. Não sei se serão mais hoje do que outrora, mas sei que a grande diferença não é essa. A diferença, como salientou Umberto Eco, é que essas pessoas e as suas opiniões disparatadas estavam confinadas à mesa dos cafés. Hoje, com as redes sociais a darem voz a cada uma delas, o céu é o limite. Particularmente se, como vem cada vez mais acontecendo, a comunicação social dá eco ao que se passas nas redes sociais, dando relevância ao que não a tem, dando projecção a quem não a merece, tratando como representativo o que não o é. Se antes não se ia consultar o ébrio no café, porque se consulta o seu equivalente online?

2. Desvalorização do conhecimento e da ciência

No esgoto a céu aberto que são as redes sociais, a disseminação de informação contra-científica é larvar. Também o são o radicalismo, as teorias da conspiração, a ignorância em geral e a desconfiança generalizada na ciência. Bem sei, as redes sociais não são um bom barómetro da sociedade. Mas o que lá se passa não deve ser ignorado: é uma doença altamente contagiosa.

Mas, talvez a pergunta que mais interessa é: como é que chegámos aqui? Numa época em que nunca a ciência esteve tão avançada e em que, apesar das limitações que todos conhecemos, os respectivos benefícios estão ao alcance de cada vez mais, como há tanta gente que não percebe os mínimos suficientes para acompanhar uma explicação de um especialista? Que não percebe sequer o suficiente para se dar conta dos disparates que diz?

A resposta é sem dúvida muito complexa. Mas penso que muitos dos aspectos por que ela passa caibam sob uma cúpula maior: criámos um modelo de sociedade que desvaloriza o conhecimento. Mais! Criámos um modelo de sociedade que valoriza a ignorância e a futilidade, a diversos níveis.

Um primeiro nível terá a ver com o ensino secundário em Portugal. Não sou um estudioso do assunto, mas como professor universitário lido com o produto acabado do ensino secundário. Supostamente até, lidarei com os melhores destes produtos, os que chegam ao ensino superior. O mínimo que posso dizer é que deixam a desejar. Por múltiplas razões, que aqui não cabe desenvolver, mas em particular pela ausência de conhecimentos transversais sobre a sociedade, a vida e o conhecimento em geral. Como é isto possível? O ensino básico e secundário não existe para transmitir a todos os cidadãos um conjunto de conhecimentos básicos considerados essenciais para a vida em sociedade? Não é por isso que é obrigatório para todos até ao 12.º ano? Claro que haverá alunos extraordinários a sair do sistema educativo português mas, da minha experiência, o aluno médio (muito mais relevante para aferir o padrão de exigência e qualidade do que o aluno excepcional) está francamente abaixo do que deveria estar qualquer pessoa que passou 12 anos a estudar. E isso vê-se na incapacidade de compreensão. Porque só quem não compreende pode achar-se uma pessoa informada porque viu dois ou três vídeos da “Universidade” do YouTube, ou porque segue dois ou três influencers no Instagram.

Um segundo nível da resposta é conexo com a parte final do ponto anterior: glorificamos pessoas estúpidas. Achamos que alguém famoso percebe alguma coisa sobre alguma coisa, com base em facto nenhum a não ser a sua fama. Assumimos que ser famoso e, às vezes, bem-sucedido torna uma pessoa apta a ser um modelo para a sociedade, dando-nos conselhos de vida, e tecendo considerações sobre a sociedade em geral. E, claro, a maior parte destas pessoas não tem pudor nenhum em comentar tudo e mais alguma coisa, com extraordinária leviandade.

Alguns dos programas com maior audiência em Portugal são os programas das tardes. Cheios de painéis de pessoas, especialistas em coisa nenhuma, que comentam tudo, para pessoas que absorvem cada palavra e para quem cada uma dessas palavras é um dogma. Há uns anos, num desses programas, João Malheiro comentou que a Organização Mundial da Saúde tinha retirado a homossexualidade da sua lista de doenças, mas contra a sua opinião.

Pior ainda, porque mais perigosos, são os semi-especialistas, ou pseudo-cientistas, que nesses mesmos programas aparecem – de bata branca, para impressionar –, propagandeando dietas ou curas milagrosas, enganando com o discurso que soa científico sem o ser.

Em abono da verdade, há também genuínos conhecedores com presença regular. Porém, como os “milagres”, o sensacionalismo e a teoria da conspiração são mais apelativos, as presenças destes são menores.

Um terceiro nível tem a ver com o comportamento dos poderes públicos. Os mesmos que desesperaram perante as dificuldades em fazer os portugueses compreender a potencial gravidade da situação; a importância de usar máscara; a importância do distanciamento social; etc. Estes mesmos poderes públicos autorizaram a abertura em Portugal de licenciaturas em: Acupunctura; Osteopatia; Medicina Tradicional Chinesa e Fitoterapia, entre outras. Os benefícios para a saúde destas actividades são, na melhor das hipóteses, duvidosos. As respectivas credenciais científicas praticamente inexistentes (cfr. “A ciência e os seus inimigos”, de Carlos Fiolhais e David Marçal) e, no entanto, o Estado, ao acreditá-las como licenciaturas, dá-lhes a chancela de ciência.

Da próxima vez que o Estado, perplexo, desesperar com a pergunta “Mas porque não distinguem os portugueses a ciência da não-ciência, e o que sabem do que não sabem?”, já sabem por onde começar a responder.

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