Não lhes neguem (também) o direito à vida!

Dois meses após o dia no qual a evidência científica indicou que as pessoas com perturbações do espetro da esquizofrenia apresentam um significativo risco de morte associado à covid-19, e após diversas recomendações no sentido de as incluir nos grupos prioritários de vacinação, em Portugal nada foi feito.

Foram dados a conhecer, no passado dia 27 de janeiro, os resultados de um estudo realizado com uma amostra de mais de 7000 pessoas e publicado numa revista internacional de referência na área da Psiquiatria. Esses resultados, ainda que surpreendentes para alguns, deixaram uma mensagem muito clara: as pessoas diagnosticadas com perturbações do espetro da esquizofrenia apresentam cerca de 2,7 vezes mais risco de morte se infetadas pelo SARS-CoV-2.

Este seria já, por si só, um resultado muito relevante para a comunidade científica e para os decisores políticos. Contudo, os achados do estudo não ficaram por aqui e indicaram também que apenas a idade constitui um fator de risco de mortalidade mais significativo do que o diagnóstico de uma perturbação do espetro da esquizofrenia. Simplificando: existe um maior risco de morte associado à covid-19 nas pessoas que apresentam um diagnóstico de esquizofrenia do que, por exemplo, naquelas que têm diagnosticada uma doença respiratória ou cardiovascular.

Alguns países europeus, como a Dinamarca, a Alemanha, a Holanda e o Reino Unido, compreenderam já claramente esta problemática e incluíram as pessoas com doença mental grave nos grupos prioritários de vacinação. Outros países, como a Letónia, a Roménia, a Espanha, a República Checa e a Suécia, ainda que não as tenham incluído nos grupos prioritários, incorporaram nas suas prioridades vacinais pessoas com “deficiências/incapacidades” ou com “problemas comportamentais ou mentais que possam interferir com a adesão às medidas de regulação pandémica”. Portanto, de forma mais ou menos direta, começa a verificar-se uma progressiva sensibilização a nível europeu para os riscos que as pessoas com doença mental grave correm caso não sejam vacinadas a curto prazo.

No caso concreto de Portugal, logo durante o mês de fevereiro um grupo de investigadores apelou às autoridades de saúde europeias e nacionais para que os planos de vacinação pudessem incluir como prioritárias as pessoas com doença mental grave. Já no início do mês de março o Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e a Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica da Ordem dos Enfermeiros manifestaram-se no mesmo sentido, tendo desencadeado a emissão de recomendações similares à Direção-Geral da Saúde e à Task Force para a Vacinação.

A verdade é que cerca de dois meses após o dia no qual a evidência científica indicou que as pessoas com perturbações do espetro da esquizofrenia apresentam um significativo risco de morte associado à covid-19, e após diversas recomendações no sentido de as incluir nos grupos prioritários de vacinação, em Portugal nada foi feito. Aquilo que se pede não é muito; é apenas que se trate de forma digna cerca de 50 mil pessoas que, tendo uma doença mental, à luz do Artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa “têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.

Esta não é seguramente uma causa popular. A maioria dos cidadãos portugueses não tem qualquer familiar ou amigo diagnosticado com uma perturbação do espetro da esquizofrenia e o voto destas pessoas, tradicionalmente, não decide processos eleitorais. É difícil advogar por aqueles que não se queixam, por aqueles que recorrentemente são estigmatizados pela sociedade. São pessoas que muitos não conhecem, são pessoas de quem outros tantos não desejam sequer aproximar-se. Mas são pessoas...

A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma, logo no seu Artigo 1.º, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Sabemos que, lamentavelmente, a realidade nem sempre corrobora esta ideia, e as pessoas com doença mental grave estão entre as que mais sofrem de discriminação e marginalização social. É verdade que muitas delas já não têm voz mas, por favor, não lhes neguem também o direito à vida! A evidência científica é clara e, em contexto de crise sanitária, é imperioso agir tendo por base a mesma. Não o fazer pode até não ser criminoso (leia-se, ilegal), mas é seguramente indigno e desumano.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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