Khashoggi: alto responsável saudita ameaçou de morte investigadora da ONU

Ameaças à investigadora independente Agnès Callamard, a primeira a acusar a Arábia Saudita de “execução premeditada e deliberada” do jornalista Jamal Khashoggi, foram feitas numa reunião em Genebra.

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Callamard liderou a investigação da ONU ao assassínio de Jamal Khashoggi, em 2018 DENIS BALIBOUSE/Reuters
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Khashoggi foi morto e desmembrado no consulado saudita de Istambul Osman Orsal/Reuters
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Mohammed bin Salman foi promovido a sucessor directo do pai em 2017 ANDY RAIN/EPA

Um alto responsável do Governo saudita garantiu que se a ONU não silenciasse a investigadora Agnès Callamard, depois da publicação do seu inquérito ao assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, ele tinha gente pronta a “tratar-lhe da saúde” (“take care of her”). A frase, dita e repetida numa reunião de alto nível entre enviados de Riad e responsáveis da ONU, foi interpretada por quem a ouviu como “uma ameaça de morte”, revela Callamard numa entrevista ao diário britânico The Guardian.

Callamard, que se prepara para deixar o cargo de relatora especial das Nações Unidas para as mortes extrajudiciais, foi a primeira a afirmar que Khashoggi foi vítima de um assassínio brutal no consulado saudita de Istambul. Isto em Fevereiro de 2019, depois de uma visita à Turquia. Já o relatório que coordenou, e que foi divulgado em Junho desse ano, defende que MBS (como é conhecido o príncipe e líder de facto da monarquia) deve ser investigado por existirem “indícios credíveis” de que esteve envolvido no assassínio do crítico do regime, “um crime internacional”.

Foi durante uma discussão sobre o conteúdo desse relatório e as afirmações de Callamard que as tais ameaças surgiram, numa reunião de Janeiro de 2020. Callamard diz ter sido informada por colegas presentes na reunião e o Guardian confirmou a sua descrição. Na reunião de “alto nível”, os sauditas deram conta da sua raiva face ao trabalho da relatora e acusaram-na de receber dinheiro do Qatar (uma acusação habitual contra críticos do regime saudita).

Um dos altos membros do regime presentes afirmou então que tinha recebido telefonemas de pessoas que estavam preparadas para “lhe tratar da saúde” se a ONU não “tratasse dela”. Face à reacção alarmada dos responsáveis da ONU, outros sauditas presentes tentaram assegurar que o comentário não devia ser levado a sério. Mas quando os sauditas deixaram a sala, o autor das ameaças ficou para trás e repetiu-as aos representantes da ONU que ali permaneciam: disse, especificamente, que conhecia gente que se tinha oferecido para “tratar do assunto” se eles “não o fizessem”.

“Foi-me relatado na altura e foi uma daquelas ocasiões em que a reacção das Nações Unidas foi muito forte. As pessoas que estavam presentes, e depois disso, deixaram claro à delegação saudita que aquilo era absolutamente inapropriado e que havia a expectativa de que não continuasse”, diz Callamard.

Questionada sobre como é que os comentários foram interpretados pelos seus colegas em Genebra, a perita em direitos humanos francesa respondeu: “Uma ameaça de morte. Foi assim que foi entendido.” Callamard já afirmara ter recebido algumas ameaças relacionadas com o seu trabalho, incluindo do Presidente filipino, Rodrigo Duterte, mas nunca falara destas ameaças sauditas.

Bens e compromissos

O Governo da Arábia Saudita não respondeu aos pedidos de comentário do jornal britânico. Esta relevação chega um mês depois de os Estados Unidos terem divulgado um relatório dos serviços secretos, que permanecia classificado, onde se confirma que MBS sabia e autorizou a captura e o assassínio do jornalista dissidente que vivia nos EUA e escrevia no diário The Washington Post.

Depois da publicação deste relatório, Washington aprovou sanções contra 76 sauditas mas deixou de fora o príncipe herdeiro. A pressão para os EUA sancionarem MBS deverá aumentar com estas relevações – activistas dos direitos humanos e mesmo congressistas já tinham exigido acções directas contra o príncipe. Callamard, em particular, pediu expressamente a responsabilização de MBS, através de sanções que “atinjam os seus bens pessoais e os seus compromissos internacionais”.

A relatora deixará o cargo na ONU ainda este mês e assumirá o cargo de secretária geral da Amnistia Internacional. “Sabe, estas ameaças realmente não funcionam comigo. Bem, não quero atrair mais ameaças”, disse ao Guardian. “Mas eu tenho de fazer o que tenho de fazer. Não me impediu de agir da forma que penso ter sido a correcta.”

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