Fisco já está “a recolher elementos” sobre venda das barragens, diz João Leão

Ministro das Finanças diz que a Autoridade Tributária vai ser “rigorosa” se tiver havido planeamento fiscal agressivo no negócio das barragens da EDP.

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O ministro das Finanças, João Leão LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO

O ministro das Finanças adiantou esta terça-feira na Assembleia da República que a Autoridade Tributária já está a “recolher dados” sobre a transacção entre a EDP e o consórcio francês liderado pela Engie para o trespasse das seis barragens do Douro.

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O ministro das Finanças adiantou esta terça-feira na Assembleia da República que a Autoridade Tributária já está a “recolher dados” sobre a transacção entre a EDP e o consórcio francês liderado pela Engie para o trespasse das seis barragens do Douro.

O ministro João Leão, que está a ser ouvido, em conjunto com o ministro do Ambiente, na Comissão de Ambiente, Energia e Ordenamento do Território sobre o trespasse das concessões, diz que perguntou à Autoridade Tributária em que fase estaria a avaliação do negócio da EDP e que obteve a informação que já está em curso uma averiguação.

“Já estão a trabalhar e a recolher elementos, para ver se há planeamento fiscal agressivo”, disse João Leão, na audição requerida pelo Bloco de Esquerda.

“Temos de ser exigentes nas situações de planeamento fiscal agressivo; o Governo tem dado indicações à AT de que tem de ser rigorosa” nestes casos e fez alterações sucessivas à lei para apertar a malha, indicou o governante.

Se vier a confirmar-se esse cenário no negócio da EDP, a AT agirá em “conformidade”, sublinhou o titular das Finanças.

Em causa está no essencial o não pagamento de 110 milhões de euros de imposto do selo, num negócio de 2,2 mil milhões de euros.

Acrescentando que “a questão de separação de poderes é muito importante”, o ministro das Finanças salientou que a AT “tem total autonomia” e irá agir no momento adequado, se houver lugar “à eventual liquidação de impostos devidos”.

“O Governo não interfere na actividade inspectiva da AT, como é próprio de um Estado de Direito”, em que “o Governo não manda investigar a empresa A ou B”, frisou o ministro.

Leão pede cautela com “suspeições"

João Leão notou que “o momento de actuação” da AT em relação ao imposto do selo (cuja liquidação a EDP deveria ter feito em Janeiro, se considerasse não estar isenta) “é agora”, porque os serviços já conseguiram recolher informação sobre a não declaração desse tributo específico.

O eventual incumprimento de outros impostos associados ao negócio, que apenas terão de ser declarados mais tarde pela EDP, só poderá ser analisado pelo fisco mais para a frente, acrescentou.

A deputada do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, considerou “lamentável que o Governo esteja a atirar para a AT” o ónus de analisar se houve ou não fuga aos impostos, como se houvesse dúvidas sobre as capacidades “da AT ou da Administração Pública”.

“A suspeita não é sobre a AT, a suspeita é sobre o Governo, que autorizou este negócio”, afirmou a parlamentar. “A grande suspeita” é que “o Governo teve conhecimento do esquema fiscal antecipadamente e não travou o negócio”, acrescentou Mortágua, referindo que ainda está por saber-se de a EDP vai ou não “invocar o artigo 60º [do Estatuto dos Benefícios Fiscais, que foi alterado pelo Governo em 2020] para não pagar o imposto”.

Em resposta, o ministro das Finanças quis salientar que já houve “um reconhecimento” do PSD e do Bloco de Esquerda que a alteração ao artigo 60º “não tem a ver com trespasse de concessões de barragens” e deixou um reparo a Mariana Mortágua: “Temos de ter cuidado na forma como lançamos suspeições. Somos todos pessoas de bem e devemos todos evitar radicalismos a abordar questões”.

APA emitiu parecer contra venda

Na audição, a deputada do Bloco de Esquerda confrontou o ministro do Ambiente com um parecer interno da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) ao negócio, em que esta agência levantava reservas ao valor das concessões que a EDP pretendia trespassar, lembrando que decorrem processos na justiça sobre esse tema.

“A APA não está em condições de autorizar a transmissão já que está em causa o interesse público e a situação não é clara face aos processos judiciais, nacional e comunitário, que estão a decorrer”, lê-se, a respeito das várias barragens, no parecer a que o PÚBLICO teve acesso.

A APA terminava o parecer, de Julho do ano passado, com uma recomendação ao Ministério do Ambiente: “Propõe-se que seja solicitado um parecer jurídico que avalie se fica garantido o interesse público com a transmissão de cada uma destas concessões”.

O que a APA quis dizer, segundo Mariana Mortágua, é que “não há confiança nas avaliações do valor das barragens [feitas pela EDP, no tempo de Manuel Pinho como ministro da Economia] e não há forma de saber se o Estado não está a perder dinheiro”. E isto deveria ter servido para o Governo barrar a transacção, insistiu.

Governo não impediu “porque não quis”

Matos Fernandes deixou claro que “o Governo não impediu o negócio porque não quis”, porque vê com bons olhos a entrada de mais empresas num sector em que a EDP era ainda monopolista, e porque exercer o direito de preferência implicaria pagar os mesmos 2,2 mil milhões de euros que os franceses estavam dispostos a pagar, mas “sem garantias de ser ressarcido de tal quantia noutro concurso de concessão”, além de não ser vocação do Estado gerir barragens, defendeu o ministro da Transição Energética.

Sobre o parecer da APA referido por Mortágua, o governante afirmou que foi um entre outros, nos 11 meses que durou a análise do processo, mas notou que foi “mesmo relevantíssimo para vir a fixar condições” nas adendas aos contratos.

As acções na justiça, inclusive a acção contra o Estado por ter prolongado as concessões da EDP em 2008, sem concurso público, podem levantar questões, mas “nunca a Engie se pode queixar ou vir pedir [reparação] ao Estado, caso esse negócio venha a ter problemas mais à frente”, retorquiu.

Sobre os contornos jurídicos da transacção, que a isentaram do pagamento do imposto do selo, o ministro do Ambiente disse ainda que o Estado não “deve imiscuir-se nas configurações jurídicas dos negócios entre particulares”.

Remetendo a análise da questão fiscal para “quem a sabe decidir: a AT”, Matos Fernandes rejeitou a possibilidade de exigir contrapartidas para aprovar a venda ao consórcio francês, sublinhando que o Estado “não podia exigir contrapartidas num negócio em que não era parte”.