Relação médico-doente

O contacto humano periódico é fundamental no estreitar da relação médico-doente. Aperfeiçoemo-nos pois no que somos insubstituíveis, a inteligência emocional será, provavelmente, o reduto inultrapassável por máquinas humanizadas.

Em Março de 2018, a agência oficial Xinhua da China noticiava que um robot dotado de Inteligência Artificial tinha permissão para diagnosticar pacientes e passar receitas, após ter passado nos exames para exercer medicina. Designado por “Doutor Assistente IA”, a este primeiro “colega” robot foi atribuído pela empresa fabricante Chinesa iFlytek, um aspeto humanóide: grandes olhos azuis à ocidental, enxertados num perpétuo sorriso oriental. Operando baseado nos diagnósticos e receitas de outros médicos armazenados em memória, iria, numa primeira fase, ser tutelado por um colega humano.

Entretanto emergiu a pandemia covid e, que me tenha apercebido, nada mais foi dito sobre os progressos na área da robótica médica de um dos países líderes na investigação em inteligência artificial. Abrimos a boca de espanto quando, para fazer face à pandemia, o eis “gigante adormecido” construía hospitais de agudos a um ritmo frenético, mais rápido com que por cá se erguem modestos hospitais de campanha. Se no campo da robótica evoluíram ao mesmo ritmo, muitos colegas IA terão sido entretanto produzidos.

Como é tentador ver “Doutores Assistant” na cadeia de combate a um qualquer agente infecioso, tanto mais por gozarem de total imunidade à infeção. Como é preocupante ver, também, as atividades profissionais ligadas à Medicina ameaçadas pela concorrência de máquinas inteligentes, incansáveis, embora (ainda?) desprovidas de empatia. Programadas por algoritmos, serão certamente imbatíveis em processos dedutivos mas, desprovidas de inteligência emocional, não podem transmitir o calor humano que envolve o ato médico.

Desassosseguemo-nos, nestes dois anos como terá evoluído a medicina robótica por esse mundo fora? Abel Salazar dizia: um médico que apenas sabe de medicina, nem de medicina sabe; um século depois dir-se-á: um médico que só sabe da sua especialidade, nem da sua especialidade sabe. Porém, quando um qualquer robot programado souber mais de ciência médica que o conjunto de profissionais do país mais avançado nesta área do conhecimento, que estaremos autorizados a dizer?

Lembrei-me então da simpática idosa que me trouxe uma caixa com bolos de arroz. Olhe que não devem ser para mim, a senhora não é minha doente. Bem sei, quero agradecer-lhe ter levantado o dedo quando estava com aquele incómodo tubo na boca depois de ser operada. Os seus colegas viam os papéis e falavam entre eles, mas nenhum olhou para mim. Ocorreu-me então que nas visitas ao sábado de manhã acompanhava os colegas cirurgiões sendo raramente solicitado a intervir. Tinha, assim, mais tempo disponível para olhar os doentes nos olhos.

Sendo certo que facilmente se programa um médico IA para levantar o polegar numa passagem de visita médica, questiono: por mais azuis que sejam os olhos e mais rasgado o sorriso, será que algum ser humano dará mais valor ao gesto de um “colega IA” que o que damos hoje aos postais que, por mero automatismo de calendário, nos são enviados no dia de aniversário?

Nós, profissionais de Saúde, preservemos e otimizemos a relação de proximidade com os doentes, hoje posta em causa por consultas à distância. O contacto humano periódico é fundamental no estreitar da relação médico-doente. Aperfeiçoemo-nos pois no que somos insubstituíveis, a inteligência emocional será, provavelmente, o reduto inultrapassável por máquinas humanizadas.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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