Quando falamos de cidadania, falamos de quê?

Num mundo em pandemia no qual nos deparamos com um vínculo específico entre supostos deveres — de protecção da saúde individual e colectiva — e direitos — de acesso a testagens fiáveis e a vacinas eficazes e seguras, discutir a cidadania é discutir a nossa posição num cenário de intensa globalização e de consequente interdependência entre nacionalidades.

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Protesto em defesa de um espaço público verde na Praça do Martim Moniz, em Lisboa LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO

Existem muitas divergências intelectuais e morais quando abordamos a temática da cidadania. Se aquilo que aproxima as diferentes perspectivas se prende com ideias relacionadas com o respeito, a responsabilidade ou a solidariedade, os caminhos separados trilham-se num eixo que vai das antigas concepções dos valores religiosos aos actos de resistência e de subversão praticados por grupos percepcionados como minorias no espaço público. O que significa, então, falar de cidadania? Que fundamentais princípios e dimensões se incrustam e orbitam em torno deste conceito? Qual o perfil de um bom cidadão?

Ao analisarmos a literatura científica, compreendemos que não é possível discutir as questões de cidadania sem falarmos de direitos. Direitos associados, como nos afirma T. H. Marshall, ao civil (posse de propriedade, liberdade de utilização da palavra e de crença…), ao político (eleger e ser eleito) e ao social (direito à saúde, à educação ou à segurança social); mas não só, dado que Marshall se focalizou muito na problemática ao nível da classe. Donde surgiram, com o avançar das décadas, outras exigências de igualdade e de justiça social, nomeadamente as preocupações do(s) feminismo(s) e do lugar e estatuto da mulher ou da criação de políticas de inclusão que não passem por uma visão assistencialista de cuidado sobre os mais vulneráveis e de atribuição aos mesmos de uma voz, mas sim por uma relação entre diferenças assumidas como tais e onde as vozes são assumidas pelos seus protagonistas — visão de autores como Stephen Stoer e António Magalhães, no seu livro A Diferença Somos Nós: A Gestão da Mudança Social e as Políticas Educativas e Sociais (2005). Portanto, ao estudarmos as reflexões que consubstancializam a noção de cidadania, vemos que nela é equacionado um conjunto de direitos económicos, políticos, educativos, culturais, entre outros.

Todavia, há quem reclame também uma característica de dever a estas lutas pelo conquistar de garantias e salvaguardas. Frequentemente ouvimos dizer que alguém, numa dada situação social, “não tem só direitos, mas também deveres”. No entanto, esta crença, totalmente legítima, esquece-se de forma igualmente constante da dialéctica estabelecida entre direitos de uns e deveres de outros. Por exemplo, no que concerne à protecção do ambiente, existe uma consciência de que se colocarmos os resíduos em locais específicos para o efeito, em vez de os atirarmos para o chão, estaremos a cumprir com o nosso dito dever no sentido de estarmos a proporcionar um direito a outras pessoas, que vivem hoje ou viverão no futuro, de fruição de um ambiente com qualidade — e também, naturalmente, estamos a permitir-nos experimentar essa vantagem mútua. Esta visão de um dever como direito e como construção de uma cidadania mais esclarecida do seu papel na vida em sociedade é, na minha opinião, a forma mais eficaz e satisfatória de realizar a pedagogia e a performance dessa cidadania, mais do que uma qualquer obrigatoriedade legal ou devoção à moralidade.

Por fim, estarmos cientes do atributo de cidadão é sabermos que a cidadania se faz na condição de plural. Porque integra uma diversidade de direitos e deveres, mas também se desenvolve em múltiplos contextos e identifica numerosas relações de poder e vias de edificação da identidade, a cidadania não se pode gerar nem ser gerida com vista a um modelo de cidadão universal que, por isso, aponta para o etnocentrismo. Este modelo homogeneíza a qualidade cidadã e as diferenças com base no ponto fixo BEMCHUC — “Brancos, organizados socialmente pelo Estado, Masculinos, Cristãos, Heterossexuais e tendencialmente Urbanos e Cosmopolitas” (Stoer, & Magalhães, 2005: 138). Deixa de haver, aqui, um espaço para outras expressões territoriais, da sexualidade, religiosas, étnicas ou políticas. Em contrapartida, Helena Araújo (2007: 83) propõe-nos uma “cidadania na sua polifonia”, alvo de conceptualizações e de práticas que a coloquem, a meu ver, no centro do debate sobre as democracias nacionais e as relações internacionais.

Num mundo em pandemia no qual nos deparamos com um vínculo específico entre supostos deveres — de protecção da saúde individual e colectiva — e direitos — de acesso a testagens fiáveis e a vacinas eficazes e seguras — discutir a cidadania é discutir a nossa posição num cenário de intensa globalização e de consequente interdependência entre nacionalidades. Isso significa que os argumentos preconcebidos ou vazios de significado acerca do que é ser um bom cidadão e uma boa cidadã não se compaginam com uma representação e uma vivência da cidadania que se quer rigorosa, porém justa; abrangente, porém inclusiva; articulada com o digital, porém com os pés na realidade física e nas suas necessidades, anseios e desafios.

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