Sofrimento intolerável ou intolerância a quem sofre

Nenhum médico pode ser parceiro dum acto de morte deliberada, seja sob que pretexto for. A compaixão médica exerce-se por outras formas.

Recentemente tem-se falado muito de sofrimento, quer a propósito da triste iniciativa legislativa da Assembleia da República de legalização da eutanásia, quer a propósito do também triste (embora, por agora, reprovador) acórdão do Tribunal Constitucional que optou por se ater a detalhes, omitindo a questão de fundo – a inviolabilidade da Vida Humana. Invoca-se o conceito de “sofrimento intolerável” e convoca-se a validação médica das situações de gravidade extrema, para enquadrar um contexto em que a invocação da compaixão justificaria o acto de matar.

Para quem não é jurista, e sobretudo para um médico, é difícil entender que o direito à vida não se confunda com o dever de viver. De facto, a medicina preventiva, por exemplo, não é mais que a adopção de estilos de vida que protejam e cuidem da própria vida, garantam o dever de viver, promovam a qualidade de vida e assegurem maior longevidade. É muito perturbador que tudo isto possa ser questionado pelo conceito subjacente à afirmação citada.

Não é possível medir o grau de sofrimento, e a sua importância para cada pessoa tem que ver com a forma como cada um vivencia o próprio sofrimento. Situações de certa banalidade clínica e de bom prognóstico podem ser sentidas como de sofrimento intenso e situações extremas, prolongadas e destrutivas, podem ser suportadas com serenidade. Com mais propriedade falaria de sofrimento “intolerado” que de sofrimento “intolerável”.

Envolver os médicos como avalistas deste processo levanta inúmeras questões. Qualquer acto médico, qualquer opinião clínica, deve visar o bem do doente e a defesa da sua vida. É assim desde Epicuro e Hipócrates e assim deve continuar a ser. Um acto ou uma opinião médica que encoraje, favoreça ou seja cúmplice dum ponto final que é provocar, directa ou indirectamente, pessoalmente ou por interpostas pessoas ou técnicas, a morte do doente, deve merecer a condenação frontal da classe médica. Nenhum médico pode ser parceiro dum acto de morte deliberada, seja sob que pretexto for. A compaixão médica exerce-se por outras formas.

Todo o sofrimento tem dignidade pois a dignidade é inerente à pessoa que sofre. Invocar a perda de dignidade associada ao sofrimento é insultar os que sofrem dignamente. A intensidade do sofrimento tem também que ver com solidão, abandono, perda. A resposta da comunidade perante as situações de sofrimento extremo tem que ser a de acompanhamento, apoio, suporte, alívio, de forma consistente, enquadrada e organizada, não permitindo que o sofrimento extremo se torne intolerável. Mesmo para esta derradeira situação, provocar a morte não é solução; provocar a morte é a derrota e a demissão das soluções.

O sofrimento não é feito apenas de dores físicas, mas engloba um conjunto complexo de factores que incluem a destruição da auto-imagem, o abandono, a solidão, o desespero, a exaustão. Mas mesmo nessas circunstâncias de dureza intensa, mesmo dotados de razão, de autonomia e de liberdade para decidir, quem pode e com que autoridade decidir sobre a destruição da própria autonomia, da própria liberdade e da própria vida? Na verdade, como escreveu José Tolentino de Mendonça: “... quem pode, com verdade, considerar-se dono da vida? Não seremos antes guardadores, e apenas isso, apenas guardadores desse mistério que é maior do que nós?”. E que dizer do sofrimento “social”, não associado a doença e tantas vezes produzido por um Estado disfuncionante ou incapaz das respostas de enquadramento social adequadas? Estão fora deste tema? Ou só entram nele quando as deploráveis condições de vida provocam doença?  Então aí o próprio Estado prepara-se para facilitar a eliminação física dos casos que ele próprio causou ou favoreceu?

A inviolabilidade da vida humana deve continuar a ser uma bandeira levantada por séculos de civilização. É importante afirmar que hoje há soluções ontem impensáveis e que os desafios da ciência também passam pela paliação e que os desafios de ajuda a quem sofre devem passar por uma maior resposta comunitária que promova, de facto e a sério, políticas de cuidados paliativos e de apoio efectivo ao desespero e à solidão dos que sofrem.

Entre os perigosos caminhos que a rampa deslizante iniciada por esta trágica medida legislativa pode vir a trazer, será essencial que não se confunda “sofrimento intolerável” com intolerância a quem sofre.

Médico, co-fundador do MAE

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