Já sentiram fadiga digital?

Quem tem passado dias a fio em frente ao computador, entre reuniões de Zoom e afins, com os miúdos à perna ou isoladamente sozinho sem sentir o calor humano de proximidade, acumula cansaço.

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Reuters/LOREN ELLIOTT

E que tal passarmos a trabalhar, aprender, socializar e aceder a entretenimento somente pela via digital? Acho que já ninguém vai nessa. A pandemia teve esse efeito clarificador. Demonstrou que entramos definitivamente na era pós-digital, assim à bruta. Não vivemos sem o digital. As ferramentas são excelentes, mas… Mas, como tudo o resto, o que é demais enjoa. Já sentiram fadiga digital? Eu já, todos os dias e a crescer. E não sou o único. Cada vez mais pessoas sentem a necessidade de desligar e correr, ver e mexer por si, sem interfaces.

A nossa espécie evoluiu numa estreita relação com o ambiente natural em que vive, com os objectos que manipula e cria, enquanto produz assim cultura. Tudo isso tem uma dimensão material inegável, ainda que a imaterialidade da nossa existência nos distinga dos restantes animais. Hoje somos foçados a viver apenas numa imaterialidade desconectada da existência material. E isso está a desgastar-nos mentalmente. Temos uma alma materialista mesmo que a acumulação de riqueza nos diga pouco.

Quem tem passado dias a fio em frente ao computador, entre reuniões de Zoom e afins, com os miúdos à perna ou isoladamente sozinho sem sentir o calor humano de proximidade, acumula cansaço. Trabalhar em casa tem incontáveis vantagens. Introduz uma flexibilidade libertadora. Mas, na prática, sem confinamento forçado e sem pausas o trabalho à distância é dilacerante. Dispensar todas as deslocações de rotina faz bem até ao ambiente, reduzindo-se o tráfego e os engarrafamentos. Contudo precisamos de estar com outras pessoas, projectar-nos nelas, com todos os seus defeitos e virtudes. Precisamos de sentir o vento, a chuva e o sol no rosto para nos sentirmos vivos.

Já antes da pandemia se vivia um saudosismo pela materialidade. Procurávamos livros em papel, discos em vinil, corríamos para assistir a concertos de música ao vivo, aguentávamos longas reservas para experienciar aquele restaurante especial. Abdicávamos do conforto para subir a uma montanha, nadar numa praia virgem, sentir uma diferente cultura in loco. Fazíamos manualmente só pelo prazer da actividade. Mesmo beneficiando de uma substancial digitalização da nossa vida, poucos aspiram a uma digitalização total. Eu dispenso. Quero apenas beneficiar das tecnologias digitais para poder dispensar certas coisas que me impedem de desfrutar da beleza da vida material. No fundo, quero um hibridismo que proporcione o melhor dos dois mundos.

Desde criança que adoro videojogos. Mas quando comecei a trabalhar fiquei horas intermináveis preso ao computador. Foi isso que me fez entrar no mundo dos jogos de tabuleiro modernos como hobby. Se analisarmos a demografia de quem procura estas experiências constatamos que são pessoas em busca de desligar do domínio digital, pelo menos parcialmente, e explorar a riqueza das interacções humanas ao vivo. Estes jogos proporcionam experiências materiais presenciais, geradoras de envolvimento que transportam os jogadores para outras realidades sem ecrãs. Agora estamos impedidos de os jogar com todas as pessoas que gostamos. Jogamos apenas a solo, desfrutando da materialidade dos jogos. Mas o que queremos é partilhar experiências jogáveis, mundos imaginários onde nos podemos expressar, cara a cara. Mal podemos esperar pela oportunidade de desfrutar da companhia humana à mesa.

Mas isto dos jogos de tabuleiro é apenas um exemplo. Podemos encontrar muitos outros casos de busca por recuperar experiências de materialidade, quer seja na cultura, no desporto ou noutras actividades. São experiências de um materialismo essencial para manter a sanidade mental. O digital salvou-nos no momento de recolher, mas está a gerar uma fadiga acumulada difícil de disfarçar. Eu estou cansado, e vocês? Sinto falta da materialidade das emoções humanas.

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