O prazer de fazer

Largava de imediato o meu emprego e deixava de trabalhar. Quando se geram conversas à volta do que cada um faria se ganhasse o Euromilhões é uma das respostas mais comuns. Mas será que é mesmo assim?

Largava de imediato o meu emprego e deixava de trabalhar. Quando se geram conversas à volta do que cada um faria se ganhasse o Euromilhões é uma das respostas mais comuns. Mas será que é mesmo assim? Por norma confunde-se trabalho com emprego e são coisas diferentes. Todos conhecemos imensa gente que não gosta do seu emprego, ou que está insatisfeita com o que aufere no mesmo, mas que adora trabalhar. Da mesma maneira o acto de fazer — seja exercício, voluntariado, activismo, conferenciar, pintar, dançar, pescar, meditar, escalar, etc — nem sempre tem que ter uma motivação material para acontecer.

Provavelmente é ao contrário. Quantos mais recursos temos mais actividade tendemos a conceber. Por outras palavras, os seres humanos são tremendamente activos. Abandonar o reino das necessidades básicas, não significa entrarmos no da abulia e inacção, mas no da escolha e eleição, o que é diferente. Opções que provavelmente se baseariam em acções presididas pelo entusiasmo e deleite. Quando hoje se fala recorrentemente, no contexto do confinamento, de fadiga física e mental, é nisso que se pensa. A exaustão e o cansaço provêm em grande medida dessa grande sensação de impotência, ou impossibilidade, de eleger o que fazer. 

Tudo aquilo que nos faz sentir vivos, as sociabilidades, o lazer, as artes e a cultura, têm sido colocadas no fim das coisas que interessam, como se não estivesse tudo ligado. Durante este último ano tem sido recorrente propor-se uma divisão entre saúde física e mental. Fala-se da primeira. A segunda raramente é enunciada. Mas elas são indissociáveis. Ninguém está bem fisicamente se estiver de rastos mentalmente. Não estou a sugerir, longe disso, que o confinamento, ou em sentido mais lato, a estratégia de gestão da pandemia, marcada pelo binómio economia e saúde, têm sido desacertadas, mas que a narrativa que lhe tem presidido é manca.

Existiu um tempo em que se acreditou que o ser humano da produção, do consumo e do trabalho poderia coexistir com o do jogo, do lúdico, da folia. Hoje parece uma quimera e a pandemia apenas veio intensificá-lo. Se existiu algo que este contexto veio confirmar foi que a distinção entre tempo livre e trabalho está cada vez mais diluída. Antes, já o desemprego, a precariedade ou as desigualdades salariais, nos tinham conduzido para esse cenário.

Agora é também o facto de termos deixado de trabalhar a partir das nossas casas, para passarmos a viver nos nossos trabalhos. O lar como unidade de produção. A gestão do espaço e tempo, da Internet e do computador, pertencem-nos, mas propiciam uma autonomia ardilosa. Antes já estávamos sempre ligados. Mas agora vivemos na era do descanso impossível, um contínuo produtivo e conectivo, uma gigantesca prisão virtual do tempo presente, que se infiltra nas supostas áreas de descanso. O telemóvel é o agente secreto que nega a imersão numa nova atmosfera. Antes, “desligar” significava não laborar, deslocação territorial, ir de férias. Agora é inerentemente desligar o telemóvel.

Não espanta que andemos fatigados. Somos mais do que apenas seres biológicos ou de produção e consumo. O tempo para o outro, a comunidade ou a festa, que não se submetem à produção, foram quase na totalidade eliminados. Tem-nos sido negada a possibilidade de experimentar diferentes ambientes existenciais, e a potência de inventar modos de estar e fazer, ou seja, a verdadeira recreação, aquela que o realismo capitalista vê como ameaça. Vai ser necessário redescobrir o prazer de fazer o que nos apetece fazer.

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