Governos amordaçados?

A afirmação de Cavaco Silva só não é risível porque carrega com ela muito do rancor e dos demasiados ódios que o ex-Presidente nos habituou a projetar.

Há vários anos que o político que fez dois mandatos como primeiro-ministro e Presidente da República julgava ou sabia que apresentar-se como um “não político” lhe dava uma aura de seriedade entre os seus. Ao contrário de Soares, que se apresentou até ao fim da vida como um político profissional, Cavaco leu, interpretou e aplicou os sinais da descredibilização da classe, procurando a estocada final para salvaguardar aquilo que a sua vaidade sempre apreciou: estar acima de todos os políticos, garantindo o seu lugar ao sol na boa memória da maioria dos portugueses. O desafio, como se sabe, não era fácil para quem esteve no poder como nenhum outro nos últimos 40 anos e diria, desde já, que foi mal-sucedido neste seu propósito!

Escutando algum do burburinho estapafúrdio da direita mais reacionária e dos seus partidos no último mês, Portugal encontrava-se à beira de uma espécie de dissolução da democracia, com atentados diários à mesma e levados a cabo pela mão mais visível ou invisível do poder socialista. Cavaco leu, interpretou e aplicou novamente os sinais desta sua direita e, num passo à frente, referiu que vivemos numa democracia amordaçada. A afirmação apenas não é risível porque carrega com ela muito do rancor e a extrapolação dos demasiados ódios que o ex-Presidente nos habituou a projetar, mais ou menos sinuosamente, nas suas considerações e análises políticas. Leva-me também a imaginar o que teria sido da cooperação institucional deste último ano e do próprio país, se o tivéssemos a ele como presidente. (Ainda existe alguém com saudades de Cavaco Silva no poder?) Só que a afirmação acabou por cair em saco roto, mesmo entre alguns dos cavaquistas de outrora, tal a sua desconexão com o contexto atual e a própria realidade democrática do país, que sugere o seu contrário. Como tão bem reforçou o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Mas este risco em que as palavras perdem o seu significado ganha eco de forma desconfigurada na ignorância e na radicalização de cada vez mais pessoas. Em especial, num tempo em que a política vive de um escrutínio maior e esta linguagem advém do mesmo lugar de outra como “são todos uns ladrões”, ignorando-se o facto de que, se existisse um escrutínio parecido a outras áreas da sociedade e o algum fosse tomado como um todo, concluir-se-ia parecido. A situação é pior quando vem de grupos de pressão e são várias as situações recentes e fraturantes em que governos já os temem. Nenhuma, porventura, tão urgente e gritante como a mais recente de 16 países europeus, incluindo Portugal, terem suspendido a administração da vacina AstraZeneca.

Para lá das organizações multilaterais, das farmacêuticas e de grande parte da comunidade científica ter insistido que os benefícios superavam largamente os riscos, quando 37 casos em mais de 17 milhões de vacinas administradas (uma probabilidade de 0,0002%), que até podem ser coincidentes e são bem menos do que os expectáveis, são, até à data, manifestamente irrisórios. No entanto, disseram-nos perante estes números que a escolha política era suportada no princípio da precaução. E pouco mais.

Importa traduzir uma parte do que esteve por detrás desta decisão transversal na União Europeia e que não foi expresso publicamente. É bem simples.

Alie-se todo o escrutínio político dos dias de hoje ao facto de o peso dos grupos de pressão anti-vacinas, negacionistas e outros que tais ser tão acentuado a nível europeu, como o será o dos extremos radicais noutros, que os governos, ao mínimo indício, têm medo das repercussões mediáticas. Por mais ignorantes ou canalizadores de ódio que sejam estes grupos, a sua voz cresce e é temida como demasiadas o são. Num país onde a força destes movimentos ainda não está tão acentuada, o Governo português decidiu ir a reboque dos 15. É assim que uma decisão irracional desta dimensão, contra a recomendação dos organismos de saúde multinacionais e com um mais do que provável revés, não só a nível humano como financeiro e no próprio processo de vacinação, foi tomada. Pelo medo. Até que a Agência Europeia do Medicamento (EMA) assegurou o incontornável. Entretanto, Portugal perdeu alguns dias.

Ao contrário de quaisquer condicionamentos, nunca as vozes foram tantas na nossa democracia e o que é mero ruído, nunca foi tão temido. Talvez sejam alguns governos europeus e o português que estejam mais amordaçados do que nunca no exercício do seu poder e na tomada de decisões racionais.

Uma questão interessante para qualquer outro dos nossos ex-presidentes da República.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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