Rodeados de entulho e lixo, Artemiza e Martinho vivem o fim do bairro 6 de Maio na Amadora

Com a maioria das construções demolidas, o bairro está transformado quase numa lixeira a céu aberto. Restam sete famílias que esperam pelo realojamento.

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Artemiza e Martinho são vizinhos, vivem em casas diferentes, mas partilham a falta de condições do bairro 6 de Maio, na Amadora, distrito de Lisboa. Rodeados de entulho e lixo, os últimos moradores aguardam a erradicação deste núcleo precário.

“O que gasto com medicação, medicamentos por causa da frieza, por causa das más condições, só Deus é que sabe”, conta Artemiza. Com uma vivência de duas décadas no bairro, recusa-se a continuar a viver assim, sem condições, e conta os dias para assinar o acordo com a Câmara da Amadora, que lhe propôs realojamento ou indemnização.

Ainda que as paredes se mantenham erguidas, com diferentes divisões, desde uma pequena cozinha a um quarto, com um tecto que deixa passar a chuva, é difícil chamar àquele espaço de casa. Já albergou “bastantes pessoas”, desde a mãe ao sobrinho, mas hoje é ocupada apenas por Artemiza, com a protecção do seu cão de raça pitbull à entrada.

“Pretendo receber o dinheiro. Preciso, tenho a minha mãe doente, tenho de mandar alguma coisa para ela, precisa de medicamento [...], porque a minha mãe está muito doente na Guiné”, expôs a moradora, adiantando que se “ajeitaria num quarto até conseguir uma coisa melhor”.

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O que está a atrasar o acordo com a Câmara da Amadora é o sobrinho que está no mesmo agregado familiar e prefere o realojamento, porque o valor da indemnização “é muito pouco”, refere Artemiza, sem revelar qual o montante, mas reforçando que a casa vai ser demolida “em breve”.

Com vontade de voltar para a Guiné-Bissau, a moradora afasta essa opção, porque tem filhos menores em Portugal: “neste momento, estão numa instituição, mas se Deus quiser, estou a lutar para que possam estar comigo de novo”.

“Se és amigo: entra, a casa é tua. Se não és, é melhor ficares na rua”. Gravado num azulejo branco com letras em azul, o provérbio marca a recepção numa outra habitação do bairro. Surge enfeitado com flores coloridas, mas incapaz de esconder a falta de condições dentro e fora de quatro paredes.

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Com a maioria das construções demolidas, o bairro está transformado quase numa lixeira a céu aberto. Serve de depósito para tudo, desde sofás antigos a raspadinhas sem prémio. O desleixo é visível, inclusive sente-se o cheiro.

Em oposição ao caos exterior, a casa onde vive Martinho Rodrigues, de 53 anos, encontra-se cuidada, com algumas condições de conforto básico, porém com as paredes marcadas pela humidade, iluminação improvisada e sem acesso a água.

“Se tivesse outra alternativa, não estava aqui”, afirma o morador. A viver há 22 anos no bairro 6 de Maio, veio de Cabo Verde para Portugal para trabalhar e “procurar uma vida melhor”.

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O caminho para o fim

Quando Martinho chegou ao bairro já se falava na demolição, no âmbito do Programa Especial de Realojamento (PER), em que a Câmara da Amadora assinou, em 1995, o acordo para a erradicação dos núcleos precários ou degradados, tendo sido recenseadas 446 famílias neste bairro.

Fora do recenseamento do PER, o morador integra a luta de dezenas de famílias contra as demolições sem aviso prévio e sem alternativas de habitação, o que resultou num protocolo celebrado em 2018 entre a Câmara da Amadora e o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) para garantir o realojamento.

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Recebendo como opções uma habitação T0 ou 26 mil euros, Martinho quer o realojamento. Já visitou uma casa, mas diz que era uma arrecadação transformada em T0, em que “a porta tinha 75 centímetros”. Pai de oito filhos, ainda que todos maiores de idade e a viver de forma independente, o “chefe de família” propõe a atribuição de um T2, até porque se tem de pagar a renda, defende que tem direito a escolher. Além disso, deseja trazer de volta a filha mais nova, de 18 anos, que vive em França com familiares, uma vez que o bairro 6 de Maio “não tem condições para ter uma menina”.

Sem conseguir trabalhar por motivos de saúde, o morador rejeita a indemnização, que daria para a entrada da compra de uma casa, mas seria difícil continuar a pagar ao longo dos anos e acabaria por perder a habitação e o dinheiro: “isso é o meu pesadelo mesmo”.

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Com a erradicação do bairro “na fase final”, permanecem no 6 de Maio “sete agregados familiares, que foram abrangidos pelo protocolo celebrado com o IHRU”, indica a Câmara da Amadora, em resposta escrita à Lusa, assegurando que foram já atribuídas habitações.

Acompanhando a reportagem no bairro, a presidente da associação Habita, Maria João Berhan, manifesta dúvidas quanto à “pressão” para realojar os últimos moradores e alerta que há “cerca de 20 famílias” que foram expulsas antes de ser reconhecimento o direito ao realojamento fora do PER.

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Por seu lado, a autarquia esclareceu que “o protocolo entre o IHRU e a Câmara Municipal da Amadora abrangeu as 24 famílias que residiam no bairro e não faziam parte do protocolo PER, desconhecendo-se quem são as 20 famílias referidas”.

Do grupo de famílias que dizem ter sido despejadas sem direito ao realojamento estão Elisabete Horta, de 39 anos, com três filhos, e Francelina Fernandes, de 64 anos. Ambas nasceram em Cabo Verde e escolheram Portugal para viver. Durante mais de uma década moraram no bairro 6 de Maio até ao dia em que a Câmara as obrigou a colocar os pertences em sacos do lixo e a abandonar as casas.

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“A Câmara diz sempre para a gente esperar, quando o bairro acabar é que vai realojar a gente, mas quando?”, questiona Elisabete, guardando boas memórias da vivência no 6 de Maio, com “muitas saudades” da época em que se vivia em comunidade.

Quando foi despejada em 2016, sem aviso prévio, Francelina também ficou sem resposta habitacional e a chorar em frente à casa demolida. Integrou a luta dos moradores junto do parlamento e do Provedor de Justiça, mas a solução tarda em chegar. Hoje, vive num terraço que foi coberto para a acolher, mas sem condições. Sentindo a injustiça no realojamento, a antiga moradora aguarda ainda pela resposta da câmara.

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“Não estamos aqui a viver, porque a câmara tirou a gente daqui. Se não fosse a Câmara, a gente estava aqui”, reclama Francelina, apontando para uma das casas ainda erguidas, contando que foi a primeira habitação em que colocaram o papel para ir abaixo, mas ainda continua de pé.

Depois de um amanhecer cinzento, o sol abre e antecipa a hora de almoço no bairro 6 de Maio. Moradores e antigos moradores juntam-se, cumprindo com a distância e o uso de máscara devido à pandemia da covid-19. Acende-se uma fogueira, coloca-se a panela ao lume e prepara-se uma dose farta de torresmos. Vão matar a fome enquanto aquecem o coração. E esperam, esperam que melhores dias virão.

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