As pressões por um certificado

Não obstante o meu acolhimento sereno do futuro Certificado Verde Digital, não o considero isento de críticas. A pressão pela igualdade dos cidadãos europeus terá de continuar.

O Certificado Verde Digital, anunciado esta quarta-feira pela Comissão Europeia, para entrar em vigor no próximo Verão, é filho de múltiplas pressões. Há vigorosas pressões económicas alimentadas pelos impactos dos ciclos de confinamentos, com negócios fechados o ano inteiro, as falências a multiplicarem-se e a economia a soçobrar; dramáticas pressões sociais com o desemprego a aumentar, a pobreza a proliferar, o desespero a crescer perante a insuficiência de recursos e a impotência para acudir a todos; veementes pressões políticas protagonizadas pelos vários anúncios unilaterais de países europeus avançarem com algum tipo de documento de livre-trânsito para abrir fronteiras, dinamizar a economia e recuperar alguma estabilidade social.

Não há crítica nesta apreciação. As pressões são manifestações de interesses e se estes forem amplos e conduzirem a um bem maior, são também legítimos. A resposta da Comissão a estas pressões não é, pois, inevitavelmente reprovável e pode mesmo ser meritória se atender satisfatoriamente a necessidades partilhadas e a expectativas generalizadas. Não alinho, pois, nas denúncias alarmistas de risco iminente para a liberdade de circulação, de discriminação entre cidadãos e de violação da sua privacidade. A Comissão teve o cuidado de não fazer depender a circulação na União Europeia da posse do certificado, prevendo que se continue a viajar com os constrangimentos que a pandemia tem imposto; não reconhece apenas a vacinação como livre-passe, mas também a recuperação comprovada da covid-19 e o teste negativo, estabelecendo ainda a gratuitidade do certificado; e recolhe o mínimo de informação necessária, sendo que prevê suprimir o certificado com a declaração futura do fim da pandemia.

Uma avaliação socialmente responsável do Certificado Verde Digital exige, pois, a consideração conjunta destes aspectos, nomeadamente o facto de todos nós precisarmos de um conjunto diferenciado de vacinas quando viajamos para determinados países com doenças endémicas para as quais não possuímos resistência assinalável. A vacinação e os dados de identificação do viajante são então obrigatórios e nunca tal suscitou um problema relevante, competindo a cada um tomar a decisão de viajar ou não. O que se torna agora específico é tratar-se de um espaço sem fronteiras, desde Schengen, e de vivermos uma pandemia. Em relação ao primeiro aspecto, o certificado mitiga as medidas actualmente em vigor, pelo que é positivo; em relação ao segundo, exige-se proporcionalidade nas medidas propostas face aos riscos comprovados, o que também parece estar assegurado, por enquanto…

Com efeito, não obstante o meu acolhimento sereno do certificado, não o considero isento de críticas. Do ponto de vista epidemiológico, está por determinar o período de imunidade de que gozam os vacinados e a sua não-transmissibilidade da doença. O mesmo se afirma em relação aos recuperados da covid, sendo que há variadíssimos casos de reinfecção. A Comissão respondeu com uma grande flexibilidade na capacidade de integrar o conhecimento científico que venha a ser produzido. Mas importa exercer agora pressão para que tal se verifique de forma adequada e actualizada.

Do ponto de vista ético-jurídico, a questão da privacidade dos dados pessoais tem de se manter como uma prioridade, a par da limitação do seu uso para a finalidade que lhes assiste e da estrita limitação do seu registo, não sendo admissível a sua generalização. Simultaneamente, a questão da discriminação carece de um olhar atento para além da mais óbvia afirmação de que quando a vacina não está acessível a todos, alguns cairão em discriminação. A Comissão acautelou as principais críticas que se foram ouvindo à medida que a ideia do certificado se ia consolidando: afinal, os que ainda não tiveram a prerrogativa de se vacinar, ou os que por razões médicas não o poderão fazer, podem circular com um teste negativo.

A discriminação latente é a da vacinação ser gratuita e os testes serem pagos pelo viajante o que, inexoravelmente, discrimina os que não tiveram acesso à vacina e que são assim triplamente penalizados: não beneficiam da imunização da vacina, têm de fazer um teste incómodo, por vezes com impacto no bem-estar da pessoa, e ainda pagam um preço elevado pelos testes exigidos, o que constitui uma forte limitação. Entre nós, os Açores e a Madeira há largos meses que apenas permitem a entrada na região com testes negativos, que os próprios governos financiam. Quem vai agora financiar os testes para que não haja de facto discriminação? A pressão pela igualdade dos cidadãos europeus terá de continuar.

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