“Bruxelas, temos um problema”

A transferência das competências referentes aos animais de companhia, incluindo os animais errantes, da DGAV para o ICNF ignora a opinião dos técnicos especialistas e coloca em risco a saúde das populações e dos próprios animais.

A Agra Europe é considerada uma das principais revistas do sector agro-alimentar da União Europeia. E na última edição, visando a actual presidência portuguesa, denunciou que em relação às conversações sobre a futura PAC o  Ministério da Agricultura português tem estado ausente e “deixa os funcionários do Conselho encarregues das negociações”, titulando a propósito num artigo que faz soar todos os alarmes: “Bruxelas, temos um problema”. Compreende-se.

Quando, no início de Fevereiro, interpelei a ministra da Agricultura, Dr.ª Maria do Céu Antunes, acerca da paupérrima execução de fundos comunitários e da violação de regras europeias, com a decisão por motivos políticos de transferir a competência dos animais de companhia, do Ministério da Agricultura e Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) para o Ministério do Ambiente e da Acção Climática e Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), a ministra da Agricultura recusou-se responder. Escutando, estavam representantes de todos os países do nosso espaço comum. E aqui chegados, já perceberam todos que um Ministério da Agricultura que em Portugal não se nota, porque quase não existe, dificilmente será capaz de muito melhor à frente dos destinos de 27 países.

Voltando aos animais de companhia, há que perguntar: depois de na última semana ter recolhido os contributos de diferentes entidades sobre os três diplomas que concretizam um novo quadro para a gestão da saúde e bem estar dos animais de companhia, será que o Governo atenderá à opinião dos técnicos e dos especialistas na matéria?

O Governo pretende separar a DGAV em dois ministérios, pese embora essa alteração orgânica contrarie orientações de instituições europeias e internacionais – que encaram a organização dos serviços oficiais de veterinária como um factor de absoluta importância para a gestão e para o controlo de crises sanitárias – e comprometa a protecção efectiva dos parâmetros de saúde pública e bem-estar animal, podendo afectar inclusivamente a circulação de animais de companhia de/e para outros Estados-membros.

A Federação dos Veterinários da Europa (FVE), com a referência ao Reg. UE 2016/429, assume a posição da Comissão Europeia, sendo peremptória quando recorda que todos os Estados-membros devem cumprir aquele regulamento, bem como o Código Sanitário para Animais Terrestres da Organização Mundial da Saúde Animal (OIE), que recomenda expressamente a existência de uma autoridade competente dotada de uma organização eficiente e recursos qualificados. Dividir a autoridade competente em dois organismos autónomos, de dois ministérios distintos, um para animais de companhia e outro para animais de produção, não tendo o ICNF qualquer experiência ou vocação para as matérias em questão, é uma violação clara dos princípios acima descritos.

Acresce que esta separação de competências de saúde animal em dois organismos autónomos é desastrosa para a execução dos planos de controlo de doenças, nomeadamente das doenças transmitidas dos animais para os humanos, ou zoonoses como a covid-19.

Os sistemas de alerta, os planos de controlo e erradicação de doenças e os planos de contingência de doenças animais requerem serviços veterinários organizados numa estrutura com uma cadeia de comando única, coordenada e onde a comunicação flua da base ao topo e vice-versa, sem entropias.

A identificação animal, o bem-estar animal, a saúde animal, a gestão dos animais errantes e a saúde pública estão profundamente interligadas entre si. É importante que todas estas áreas sejam tratadas num único organismo, dotado de meios, capacidade técnica e conhecimento.

A transferência das competências referentes aos animais de companhia, incluindo os animais errantes, da DGAV para o ICNF ignora a opinião dos técnicos especialistas e coloca em risco a saúde das populações e dos próprios animais.

A ministra da Agricultura e o Governo não percebem que o tema dos animais de companhia, incluindo os animais errantes, deve ser encarado, antes de mais, como uma questão de saúde pública, e deve, como tal, ser responsabilidade da autoridade veterinária nacional.

Esta decisão do Governo descarta o conhecimento e a experiência acumulada ao longo dos anos pela autoridade veterinária nacional, desaproveitando o conhecimento técnico e capital humano existente na DGAV e comprometendo a capacidade de coordenação, de planeamento e a independência técnica. Importa referir que a DGAV, em conjunto com as suas congéneres europeias, elabora e assegura o cumprimento das normas de bem-estar animal que se aplicam a toda a UE. É a certificação do cumprimento destas normas que permite o comércio intracomunitário de animais e produtos animais entre Estados-membros e que valida a produção animal.

O que é que tudo isto quer dizer? Bruxelas, temos outro problema. A mesma ministra que foi chamada a gerir destinos da União Europeia no âmbito da presidência portuguesa viola toda a lógica comunitária, quando em causa está a aplicação de regras europeias, no seu próprio país.

Resta-nos esperar ao menos, mais que não seja pelo exemplo, que o Governo tenha desta vez a capacidade – que não tem manifestado, nomeadamente na Assembleia da República, onde diferentes grupos parlamentares se opõem à aludida passagem de competências – de considerar a opinião das entidades que acompanham de perto estes temas.

É determinante que a análise dos pareceres relativos aos diplomas sobre a nova política pública em matéria de bem-estar dos animais de companhia, a descentralização de mais competências para as autarquias e da figura do Provedor do Animal tenha em perspetiva uma autoridade veterinária nacional única, competente e robusta, com independência técnica e dotada dos meios e recursos necessários ao desenvolvimento da sua missão.

Já se verá.

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