Von der Leyen ameaça travar exportação de vacinas da UE para países com capacidade de produção

Presidente da Comissão diz que começa a ser muito difícil explicar aos cidadãos que as farmacêuticas estejam a exportar vacinas, ao mesmo tempo que dizem que não têm doses para entregar no mercado interno.

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Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, deu uma conferência de imprensa esta quarta-feira Reuters/POOL

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disparou esta quarta-feira uma nova salva na guerra das vacinas, ao ameaçar avançar com novas medidas para restringir ou suspender as exportações de vacinas fabricadas na UE para países que, tendo capacidade própria de produção, não estão a autorizar a saída de vacinas do seu território.

O “tiro” foi dirigido ao Governo do Reino Unido e à farmacêutica AstraZeneca, que continua muito longe de cumprir as suas obrigações contratuais com o executivo comunitário, em termos de fornecimento de doses. Von der Leyen confirmou que, em vez dos 180 milhões de doses que eram esperados no segundo trimestre do ano, poderão chegar apenas 70 milhões — ou nem isso, se a empresa voltar a experimentar “dificuldades” de fabrico e distribuição.

O conflito entre a Comissão e a farmacêutica anglo-sueca arrasta-se desde o final de Janeiro, quando a empresa informou Bruxelas de que, apesar dos seus “melhores esforços”, não estava em condições de entregar as quantidades de vacinas previstas no contrato de aquisição prévia assinado no Verão.

De acordo com o calendário estabelecido, a AstraZeneca deveria fornecer 90 milhões de doses no primeiro trimestre de 2021. Depois de uma difícil renegociação com a Comissão, a empresa comprometeu-se a entregar 40 milhões de doses, mas esse valor já foi novamente reduzido para 30 milhões de doses.

Apesar de estar a servir-se da produção das suas unidades no continente para o abastecimento do Reino Unido, a AstraZeneca ainda não utilizou a sua capacidade instalada na Grã-Bretanha para satisfazer as encomendas da União Europeia — o recurso às unidades britânicas está claramente identificado no contrato com a Comissão.

Ursula von der Leyen disse esta quarta-feira que desde 1 de Fevereiro foram exportadas 10 milhões de doses de vacinas da UE para o Reino Unido, e zero doses do Reino Unido para a UE.

Do seu ponto de vista, a situação tornou-se intolerável. Para a presidente da Comissão, a UE não pode aceitar o comportamento da AstraZeneca, e, por isso, deve “reflectir” se não terão de ser tomadas medidas para garantir que as exportações de vacinas passam a ser feitas numa base de maior reciprocidade. “Estamos a exportar, mas não estamos a receber nada em troca. Somos um continente aberto, mas as estradas abertas têm dois sentidos”, assinalou.

Os reparos — e as críticas — de Von der Leyen não se dirigem apenas à AstraZeneca. Na mira está também o Governo britânico, que já fora atacado pelo presidente do Conselho Europeu, com base no mesmo argumento. “Até agora, quantas doses de vacinas foram exportadas do Reino Unido para a UE?”, perguntou Charles Michel.

Para os líderes europeus, existe um desequilíbrio evidente neste fluxo comercial. “A situação tem de mudar”, afirmou Von der Leyen, exigindo maior “abertura” e transparência” dos países produtores de vacinas que estão a beneficiar das exportações europeias de vacinas, mas a reter dentro de portas a sua própria produção (ou seja, o Reino Unido).

“Começa a ser muito difícil explicar aos nossos cidadãos como é que as vacinas europeias continuam a ser exportadas, quando ao mesmo tempo lhes dizemos não temos doses suficientes para a sua vacinação”, admitiu, sem se referir à suspensão da administração de vacinas da AstraZeneca que foi decidida por 17 Estados-membros da UE esta semana, e que atrasou a vacinação de largos milhares de cidadãos.

Mas a introdução deste novo princípio da reciprocidade aplicado à exportação de vacinas não foi a única surpresa no discurso de Von der Leyen. A presidente do executivo comunitário evocou ainda o conceito da proporcionalidade e sugeriu que a UE também poderia travar o envio de doses para países cuja taxa de vacinação é significativamente superior à europeia — como é o caso de Israel ou dos Emirados Árabes Unidos, que dependem do abastecimento de vacinas produzidas na UE.

Von der Leyen só não disse em que base jurídica sustenta as suas ameaças: para cumprir a sua palavra, a Comissão teria de fazer uma revisão do regulamento do mecanismo temporário de transparência das exportações, que entrou em vigor a 1 de Fevereiro e cuja aplicação já foi alargada até ao fim de Junho. Com base nesse instrumento, os Estados-membros só podem recusar-se a autorizar a exportação de vacinas quando está em causa o abastecimento do mercado interno.

Foi nessa base que a Itália bloqueou um envio de 250 mil doses de vacinas para a Austrália. Mas outros 314 pedidos de exportação foram autorizados desde que o mecanismo entrou em vigor: segundo Von der Leyen, saíram da UE mais de 41 milhões de doses para 33 destinos diferentes, um total que corresponde a 64% do total de 65 milhões de doses que foram distribuídas entre os 27 durante o mesmo período.

“Eu tenho de ser capaz de explicar à população da Europa como é que as nossas empresas farmacêuticas são capazes de abastecer o mundo inteiro, mas têm dificuldades de entregar doses em casa”, disse Von der Leyen, que repetiu várias vezes que “a produção de vacinas e a sua distribuição na Europa” é actualmente a sua prioridade número um. “Eu sou presidente da Comissão Europeia e tenho de defender os cidadãos europeus”, justificou.

E, para fazer isso, não afasta a hipótese de fazer uso do Artigo 122.º do Tratado de Funcionamento da UE, concebido para lidar com circunstâncias excepcionais, para anular as patentes das farmacêuticas ou assumir o controlo das suas unidades produtivas. “Esse artigo só foi accionado uma única vez, durante a crise petrolífera da década de 70. Mas estamos a viver a crise do século, por isso não afasto nenhum cenário”, afirmou Von der Leyen. “Todas as opções estão em cima da mesa. As vidas e as liberdades da nossa população, e a prosperidade da nossa economia dependem da velocidade da nossa campanha de vacinação”, acrescentou.

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