Eutanásia: quinze tópicos críticos e uma conclusão

A eutanásia e o suicídio assistido são práticas geralmente legalizadas? Não, trata-se de práticas consideradas ilícitas na maioria dos 193 países do mundo (182).

Texto crítico, escrito a propósito do manifesto “Direito a morrer com dignidade” (publicado a 06/02/2016) e do Decreto da Assembleia da República n.º 09/XIV, que regula a morte medicamente assistida não punível e altera o Código Penal (publicado no DAR, de sexta-feira, 12/02/2021, II Série-A, Nº. 76). Nota de redação: Os tópicos seguintes estão inspirados no artigo Sr. Dr., dá-me licença que morra vs. Sr. Dr., ajude-me a morrer. O Direito à Morte Assistida num Estado laico e democrático, publicado in Revista da Ordem dos Médicos, Ano 31, n.º 164, Novembro 2015, de João Ribeiro Santos, subscritor do Manifesto citado, infelizmente falecido. 

  1. “Morte Assistida”: invenção de um novo conceito, que não é necessário: já existem os conceitos de eutanásia e de suicídio assistido para dizerem o que ele quer dizer. Aliás, o novo conceito não é definido pelos partidários da eutanásia: para nada serve, senão para “esconder” uma realidade que se conhece por outro nome. Não se pode aceitar a nova expressão proposta.
  2. Que diz a Constituição portuguesa? A Constituição da República (artigo 24.º, n.º 1) diz: “A vida humana é inviolável.” Assim não limita a garantir a inviolabilidade do direito à vida mas a inviolabilidade, a disponibilidade, da própria vida humana, o que implica a afirmação dos seguintes pressupostos: 1) Viver nunca é um mal; 2) O ser humano nunca tem o direito de matar-se ou de matar outrem. O Código Penal português limita-se a incriminar, em consequência da norma constitucional, as ofensas à vida humana, entre elas a eutanásia (artigo 134.º) e o auxílio ao suicídio (artigo 135.º). A contradição entre a Constituição e o Código Penal foi inventada pelos partidários da eutanásia.
  3. O que quer dizer inviolável? É pena que os partidários da eutanásia confundam, às vezes, “inviolável” com “sagrado” ou “religioso”; inviolável significa de valor absoluto: a inviolabilidade da vida humana significa que ela tem um valor absoluto, i.e., que não pode ser condicionado por quaisquer outros, independentemente da adesão ou não a um determinado credo religioso.
  4. Uma confusão, subjacente ao manifesto a favor da eutanásia e do suicídio assistido: qualidade de vida não é o mesmo que qualidade de morte — a vida deve ser respeitada até à morte natural.
  5. A falácia sobre a liberdade: ela não é um bem abstrato, ao contrário do que pretendem os defensores da petição pela “morte assistida”; a liberdade define-se antes por relação a bens concretos, o primeiro dos quais é a vida.
  6. A despenalização da eutanásia e do suicídio assistido defendem a autonomia da pessoa? Não, a autonomia da pessoa define-se e tem sentido por referência à vida, seu pressuposto, não com a morte.
  7. Quem pode avaliar a dignidade da pessoa humana? A dignidade da pessoa humana é apenas avaliável pelo próprio sujeito? Não, a pessoa humana tem uma dignidade objetiva. Portanto, é necessária precisão na linguagem: a medicina paliativa visa aumentar, no doente, não a dignidade, mas o sentimento da própria dignidade.
  8. O equívoco da chamada “eutanásia passiva”: a eutanásia é uma intervenção ou omissão deliberada, com a intenção de terminar coma vida de outro; portanto, aqui há sempre uma prática intencional, nunca há uma mera abstenção de tratamento. Ora muita gente diz que é a favor da eutanásia porque quer rejeitar a obstinação terapêutica, a que chama “eutanásia passiva”. Mas a eutanásia nunca é passiva e não tem nada a ver com a recusa da obstinação terapêutica, que é a prática clínica de suspender medidas terapêuticas inúteis, com o intuito de não prolongar o sofrimento e a vida de doentes terminais e incuráveis. Na recusa da obstinação terapêutica não há nenhum ato ou omissão que provoque a morte: ela é uma prática legítima e já é legal em Portugal. Ao contrário do que se diz, deixar morrer não é o mesmo que antecipar a morte.
  9. Relação entre a medicina paliativa e a eutanásia: não são práticas complementares; segundo os relatos da experiência clínica, a primeira anula praticamente os pedidos da segunda
  10. Valor dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais: como alegam, às vezes, os defensores da eutanásia, os princípios e os direitos fundamentais não dependem da maioria política; mas também não variam ao sabor da consciência individual
  11.  Sentido da maioria política, sobre a eventual legalização eutanásia e o suicídio assistido: ninguém pode dizer, com os dados disponíveis, que a maioria dos portugueses é a favor da legalização dessas práticas.
  12. A eutanásia e o suicídio assistido são práticas fraturantes também do ponto de vista estritamente social — os idosos constituem já 1/3 da população portuguesa; a sua legalização poria em questão a razão de ser de todas as instituições, públicas e privadas, que se dedicam ao cuidado dos mais velhos, nomeadamente no contexto da pandemia da covid-19.
  13.  Uma constatação: para os signatários do manifesto a favor da eutanásia de 2016, a generalização efetiva da prática da “morte assistida” é indiferente, não os comove; tanto lhes faz que mais ou menos pessoas ponham termo à vida antecipadamente: e isso é pena.
  14.  Pela argumentação utilizada pelos seus defensores, parece que a despenalização da “morte assistida” é um processo de menos para mais: quando é que se vai parar, nesta escalada que promove a morte antecipada? Não será melhor parar já?
  15. A eutanásia e o suicídio assistido são práticas geralmente legalizadas? Não, trata-se de práticas consideradas ilícitas na maioria dos 193 países do mundo (182) e na maioria dos 28 Estados-membros da União Europeia e Reino Unido (183 e Estados Unidos, em 44 Estados federados). Com efeito, a maior parte dos países do globo, incluindo os considerados desenvolvidos, não legalizaram estas práticas.
  16. Assim, na Europa, só as têm a Holanda, a Bélgica, o Luxemburgo, Alemanha e Suíça (estes dois últimos Países, com despenalização apenas para o suicídio assistido); na América, nos EUA, apenas 6 dos 50 Estados federados legalizaram o suicídio assistido; no resto do mundo, só no Canadá, Uruguai, Colômbia, Nova Zelândia e Estado de Vitória da Austrália se verificou tal legalização (dados atualizados a 15.03.21.

  17. Conclusão: pelo que já foi referido, Portugal deverá manter, na sua legislação, a garantia da inviolabilidade da vida humana terminal e não se juntar à minoria de países e Estados que permitem, nas suas leis, a eutanásia e o suicídio assistido.
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