Manual de instruções para desconfinar a conta-gotas

Se já estávamos a passar por uma epidemia de instabilidade mental, a pandemia veio estraçalhar-nos como não poderíamos ter previsto.

Sete mil dicionários não chegariam para descrever a luta que cada um de nós tem travado ao longo dos últimos trezentos e sessenta e nove dias. Uns porque perderam entes queridos, outros porque perderam empregos, outros porque não conseguem encontrar uma nesga de silêncio para se ouvirem a si próprios e outros ainda porque estão cansados de se ouvir a si próprios, encurralados na solidão de um apartamento, com contacto humano praticamente nulo. Eu insiro-me neste último grupo.

Muita da discussão pública tem sido feita em torno do grosso da população que tem de trabalhar e ajudar os miúdos no meio do caos do confinamento, mas creio que faz falta falar da saúde mental dos outros, dos solitários, que estão numa gritaria silenciosa no interior das suas cabeças. Não querendo servir de exemplo para nada, não me importo de me expor porque calculo que haja uns quantos milhares de pessoas na minha situação, que poderão ter uma certa dificuldade em explicar, desabafar ou mesmo admitir a batalha que têm travado.

Vivo sozinho e tenho estado em teletrabalho na larga maioria dos meus dias – salvo quando a minha profissão me exige sair para filmagens ou para reuniões com colegas que, sorte a minha, são também uma espécie de irmãos que nunca tive. Fora isso, os encontros com amigos têm sido feitos maioritariamente por Zoom, com excepção de uma ou outra prevaricação que, apesar da malandrice, teve os cuidados sanitários necessários para prevenir o outro vírus, o da depressão.

No final da quarentena de 2020, em Maio, tive uma quebra avassaladora no meu estado de espírito. É verdade que a minha saúde mental sempre foi algo frágil e, por isso, estava mais susceptível à onda de angústia, mas tenho ouvido dezenas de pessoas sem histórico de maleitas de ansiedade ou depressão a queixar-se do mesmo. Um sentimento de ausência total de perspectivas, um vazio inexplicável, uma dor que permanece do despertar até à hora de dormir, até à hora em que se quer dormir e não se consegue, e não se consegue perceber sequer porquê. Horas e horas de um terror ao qual é impossível dar nome e, pior, curar.

Associado a este sentimento cruel, surge outro: o da culpa. Porque, afinal de contas, não há qualquer motivo para me sentir assim: tenho comida na mesa, tenho família e amigos (que, embora longe, permanecem à distância de um telefonema), tenho emprego que me mantém ocupado e mais um punhado de prazeres que vou podendo manter. E tenho a possibilidade de fazer terapia, o que me tem salvo brutalmente. Só privilégios, e, contudo, as dores persistem.

Contudo, tenho uma teoria: não foi a prisão que mais me transtornou. Foi a libertação repentina. No ano passado, lembro-me de ter saído em trabalho para que pudéssemos captar imagens da capital absolutamente vazia. Isso teve um impacto no meu estado mental que só daí a meses consegui perceber. O medo era palpável. Tinha forma. Era a forma de um buraco com forma de vida, uma vida que já lá não estava, materializada num Marquês de Pombal absolutamente despido de carros ou num aeroporto carregado de aviões pousados. E, poucas semanas depois, diziam-nos: «podes sair». Como quem diz: «podes correr para aquela arena que está cheia de leões», e nós fomos, sem saber ao certo como, encurralados entre a nossa prisão caseira e uma floresta negra carregada de perigos. E agora, para onde vou?

E depois há o ritmo, que também tem efeito na nossa própria concepção do mundo: primeiro, tivemos de parar subitamente, para logo de seguida engrenar outra vez a primeira e tentar arrancar com o carro ainda em ligeiro movimento. Esse solavanco não faz bem a motor nenhum. É por isso que me parece que a sugestão do primeiro-ministro, a de desconfinarmos a conta-gotas, é sensata. Não apenas para termos cuidado diante do vírus, mas também para não levarmos outra vez com o baque de uma torrente avassaladora de eventos e pessoas após semanas consecutivas de solidão e aborrecimento.

Como disse há pouco, estou longe de ter moral para oferecer panaceias a quem quer que seja, embora acredite que muitos estão na minha situação, em silêncio. Não era Einstein que dizia que a definição de loucura era fazer a mesma coisa repetidamente, esperando resultados diferentes? Se assim for, proponho agora esta nova estratégia: desconfinar aos bocadinhos, para bem da nossa saúde mental. Ir devagar, ao nosso ritmo, mas sem deixar de fazer o que prometemos a nós mesmos no decurso da quarentena.

Almoçar com amigos num quintal qualquer, cumprir com os dates apalavrados, fazer uma viagem para um lugar remoto e isolado. Manter vivas as resoluções, mas não ir a correr fazê-las todas. (Eu já tenho uma: assim que puder juntar-me à minha família, vamos celebrar todos os aniversários de uma vez só, o dos avós, o do tio, o da mãe, o do padrasto e o meu. Com seis pares de velas a condizer: 86, 84, 74, 56, 48, 34.)

Tudo isto está a ter um efeito nefasto nas nossas cabeças, e se calhar ainda só estamos a observar o rabo do gato, sem saber que o felino escondido é, afinal, uma pantera. Se já estávamos a passar por uma epidemia de instabilidade mental, a pandemia veio estraçalhar-nos como não poderíamos ter previsto. Mas agora é a hora de ir saindo, devagar, ao ritmo de cada um. Sempre cientes das nossas fragilidades, mas na convicção de que, provavelmente, somos capazes de mais do que julgamos. Vulneráveis, mas corajosos.

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