Amour

A idade magoa-nos quando subimos a escada sem o raio de um sorriso, uma fadiga que vem de dentro e que nos obriga a um compasso contado e sem alento.

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"Gostava de lhe ter perguntado onde fica o amor quando o tempo passa" Mag Rodrigues

Raquel e Arnaldo subiam muito devagar as escadas. Eu já tinha o meu andar, a minha casa e a minha filha sorria-lhes.

Raquel, apesar da idade, não perdera a vontade de sorrir e os colares escolhidos para o passeio deixavam-na ainda mais viva. Falei da idade por temer que os anos nos esmoreçam o sorriso. Arnaldo não sorria. Raquel continuava a fintar a vida.

Um dia, muitas vezes depois de ela nos perguntar a idade da minha filha, o nome, e pequenos códigos únicos estabelecidos entre os que ainda agora vieram ao mundo e os que mais rapidamente se despedirão dele, soube que Raquel adoecera. Como soube?

Eu não tinha ideia da forma como a vida deles se organizava até ao dia em que ela ficou doente. Nesse dia, num certo dia que já não permitia sorrisos, Raquel ficou num quarto diferente de Arnaldo, então, eu, aqui, ouvia-a a chamar por ele. Precisava de ajuda. Eu acordava com ela a pedir ajuda e eu própria pedia muito que Arnaldo a fosse acudir. Arnaldo tinha-se habituado a que fosse Raquel a acudi-lo, então não sabia o que fazer. Estava embrutecida essa capacidade de cuidar que é afinal o amor de forma resumida. Arnaldo dizia: “O que é?” Eu sabia o que era, mas não podia correr às três da manhã até ao andar de cima para ajudar Raquel.

Foram muitas noites tristes. Eu adormecia com medo que Raquel acordasse a pedir ajuda e que Arnaldo não fosse vê-la. Ambos não sabiam como se cuida de um amor moribundo — sem saber que já está moribundo.

Um dia acordei com Arnaldo a chorar muito. Chorava como uma criança sem se preocupar que os seus gemidos de dor ecoassem pelo prédio abaixo. Morreu a Raquel, pensei eu. Estava certa. Quando me senti na obrigação de explicar à minha filha tão pequenina que o que ouvíamos era choro de dor, ela perguntou: “Mas por que chora ele se não ia lá ajudá-la?” Eu também chorei. Disse-lhe só: “É o amor.”

Meia hora depois, talvez mais, Raquel descia as mesmas escadas onde antes a víramos sorrir, envolta num pano, numa maca muda. Para mim ela teria sempre os mesmos colares, as mesmas perguntas.

Passaram-se muitos meses sem ouvir Arnaldo. Havia um telefone roufenho que por vezes tocava mas que nesse tempo deixou de se ouvir. Seria eu própria a ter-me desligado do andar de cima?

Um dia estávamos a ver futebol em casa, jogava Portugal contra o mundo. É sempre assim que nos vemos não nos lembrando que também somos esse mundo. A selecção marcou golo, e, pela primeira vez em muitos meses, ouvi a voz de Arnaldo a gritar: “Golooo!” Arnaldo estava de volta assistindo a um pontapé que o catapultava de novo para a vida.

Arnaldo amava Raquel mas quando ela dependeu dele não o soube demonstrar. Não tinha sido preparado para isso. Gostava da logística de que ela se ocupava, do virar da página do calendário sem perguntas. Tudo parecia estar escrito para sempre sem interrogações.

Hoje, anos depois de tudo isto, ainda me parece ouvir o telefone tocar e a voz de Arnaldo a responder com as sílabas todas: “Está sim? Tem a bondade de me dizer quem fala?”

Arnaldo morreu entretanto. Gostava de lhe ter perguntado onde fica o amor quando o tempo passa. Onde se esconde o sorriso quando os lábios se gastam.

A idade magoa-nos quando subimos a escada sem o raio de um sorriso, uma fadiga que vem de dentro e que nos obriga a um compasso contado e sem alento.

Subiam até ao andar de cima. Tinham-se um ao outro mas não sabiam como ainda chegar ao coração vizinho.

Eu sei que Arnaldo amava Raquel mas não foi ensinado a cuidar.

Anos depois ainda ouço o lamento dele a escorregar por estas escadas.

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