Eça é que é essa

Há passagens nitidamente racistas e misóginas n’ Os Maias? Há. Contudo, Eça não viveu o tempo da segunda vaga feminista nem leu Flora Tristan, como também não conheceu a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não estaremos a exigir-lhe aquilo a que não pôde naturalmente aceder?

Estamos a viver tempos que confrontam os tempos: reavaliamos o passado com pinças do presente, ainda que conscientes de que olhar para trás é uma audácia de limitações inevitáveis. De certo modo, isso foi sempre o que fizeram os historiadores. Coube-lhes arrumar a História segundo formulações que a transformam, que a interpretam e que a ajustam a significações resultantes de leituras sempre dinâmicas. É como se o passado não fosse estático e o que aconteceu se manifeste ainda como estando a acontecer.

Nos EUA, a morte violenta de um homem de negro desencadeou em vários pontos do mundo manifestações anti-racistas, resultando na vandalização e destruição de estátuas ligadas ao segregacionismo, ao colonialismo e ao imperialismo. A onda alastrou e Portugal não foi excepção: Ascenso Simões, deputado do PS, aludindo ao Padrão dos Descobrimentos, afirmou mesmo que “num país respeitável, devia ter sido destruído” (PÚBLICO, 19 de Fevereiro). Como uma coisa leva a outra, grande parte da edificação mítica e nacionalista de alguns países passou a contar com a promessa de um olhar implacável, acusador e censório, à boa maneira polemista e, em alguns casos, desproporcionada. Essas ressonâncias ainda não atingiram a Mensagem de Fernando Pessoa; não são, porém, estranhas já a Os Maias.

Vanusa Vera-Cruz Lima, investigadora cabo-verdiana na Universidade de Massachusetts Dartmouth, nos Estados Unidos, referiu-se, recentemente, a passagens de teor racista plasmadas, pelo narrador, na “voz” de certas personagens como Ega. Não me cabe entender o propósito exegético de Vanusa nem os labirintos de interesses algo obscuros ou justificadamente oportunos que daqui possam sobrevir, porém a investigadora terá dado apenas pela ponta visível do iceberg.

Os Maias são um concentrado de boa literatura, um tratado sociológico bem arquitectado dos vícios e virtudes da alta vida lisboeta de 1880, um exercício narrativo cuja descrição é praticada segundo “um padrão que acentua a sua não-reificação do mundo, mesmo quando incide sobre ‘objectos’” (Helena Carvalhão Buescu), permitindo falar de humanização descritiva, e uma instituição expressiva daquela ironia que constitui a trave-mestra do seu universo narrativo, na qual assenta a consciência da precariedade e mediocridade de todas as coisas – a esse propósito, Isabel Pires de Lima lembrou que há n’ Os Maias uma oscilação entre uma ironia socrática e uma ironia romântica, podendo a obra ser vista “como um romance de charneira que joga, também aqui, na ambiguidade, na duplicidade”. Quer isto dizer que, tomadas as palavras na “voz” de Ega e abusando a personagem de dissertações demagógicas, o enunciado obedece a reservas, mesmo no que à pretensão de racismo possua de atrevimento. Não estou, com isto, a isentar o romance do preconceito de raça.

Aliás, se o lermos, tentando sacudir tudo o que em nós é patética adulação literária adquirida nos bancos da faculdade, por culpa (e bem) de estudiosos como Carlos Reis, verificaremos que há n’ Os Maias a coexistência pacífica do ideário progressista, o preconceito em relação à província (“O mais novo parecia um pote, vestido de casimira fina, com uma enorme faca a estourar de sangue, jucundo, crasso, lembrando ares sadios e lombo de porco” – leia-se o que se segue), e variações infindas do mais tacanho machismo (“(…) tinha estado do outro lado com uma gaja divina(…); “E está a pedir homem!”; “E gostavas que ele fosse como o papá, e que andasse sempre connosco, e que lhe obedecêssemos ambas, e que gostássemos muito dele?”), capazes de fazer corar a menos feminista das feministas. O facto de estas passagens serem atribuíveis a personagens, não exclui o que nelas Eça possa rever-se.

Mais: se li com algum detalhe a obra, descortinei pelo menos 23 variações do vocábulo “penetrar” (nada em Eça é inocente), a maioria em alusão à proximidade e aproximação de Carlos e Maria Eduarda, em nítida sugestão erótica e sexual. Não choca, se dissermos que a obsessão de Carlos roça, não raro, contornos da tara sexual. Por fim, e noutro plano, torna-se evidente a pretensão de erudição musical de Eça, que, sobre música erudita, não profere mais do que generalizações. Seria fácil, até gratuito, apontar fraquezas ao autor e à obra, e, no tempo que corre, à privação de valores de ordem moral. Acontece que esses valores mudaram.

A propósito de Os Lusíadas, Eduardo Lourenço lembra o seguinte: “A lição evangélica do pacifismo e da tolerância segundo Erasmo não penetrara muito fundo em Portugal… O ismaelita é bárbaro, torpe, nefando e os negros de África não usufruem do uso pleno da razão. Não é falta de humanidade da parte do Poeta, nem sequer eco de qualquer ideologia coerente, e muito menos ‘racismo’, noção anacrónica para essa época”. Num dos melhores ensaios lidos sobre os efeitos da crítica interna em Os Lusíadas, Armando Castro escreve: “(…) as críticas que encontrámos nesta obra artística não são da ordem do conteúdo que poderia efectuar um observador contemporâneo guiado pelas possibilidades históricas que vivemos. Camões não podia levar a sua crítica ao ponto de pretender destruir as bases da ordem senhorial, pois não existiam condições para tanto; isso excederia largamente a consciência possível dum português de há mais de quatrocentos anos”. De modo que, sobre as obras artísticas, mesmo quando tomadas como “intemporais” (à frente do seu tempo, como agora se diz), a sua verdadeira dimensão reside no tempo em que foram produzidas, mais do que em qualquer outro.

Em resumo: Há passagens nitidamente racistas e misóginas n’ Os Maias? Há. Contudo, Eça – que, convém não esquecê-lo, possui a falsa consciência de um aristocrata e só nesse paradigma pode ser julgado – não viveu o tempo da segunda vaga feminista nem leu Flora Tristan, como também não conheceu a Declaração Universal dos Direitos Humanos nem folheou Ministros da Noite – Livro Negro da Expansão Portuguesa, de Ana Barradas. Não estaremos a exigir-lhe aquilo a que não pôde naturalmente aceder? Por seu lado, Camões, que se saiba, não conheceu os belicistas de Israel nem assistiu em directo à Guerra do Golfo. Era um homem, imagine-se, do século XVI, que, nos limites da consciência máxima historicamente possível, dizia coisas como esta: “Eu, que cair não pude neste engano/ (Que é grande dos amantes a cegueira)”. Não tinha, portanto, a obrigação de passar da cegueira à consciência, da falsa consciência à dialéctica, como na esfíngica narrativa Benito Sereno de Herman Melville.

Quanto ao Padrão dos Descobrimentos, porque não deixá-lo como está? Olhando para ele, cada um goza da liberdade de exultar, indignar-se ou ficar indiferente. Esta é a vantagem de vivermos outro paradigma: o tempo em que escravizávamos, silenciávamos ou fazíamos desaparecer o outro já passou. Ou, não tendo passado, temos a obrigação de o denunciar, porque o podemos.

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