Ai! Valha-nos Deus! Não toquem no Eça!

Felizmente, durante a semana, a CNN considerou o caldo verde uma das melhores sopas do mundo, o que deve ter equilibrado o orgulho pátrio, dado a grandes oscilações.

Uma investigadora, a doutorar-se em Estudos e Teoria Luso-Afro-Brasileiros, nos EUA, apresentou há semanas uma comunicação, via Zoom, onde o ponto de partida, no sentido de provocar a reflexão, era se o romance Os Maias, de Eça de Queirós, conteria ou não traços de racismo. Lançava questões aos seus pares, académicos como ela, acerca de um trabalho que não está finalizado. Coisa vulgar em qualquer universidade.

Eis senão que o escândalo irrompe nos jornais em Portugal. Lia-se que Eça tinha sido acusado de ser racista. Que queriam censurar Eça. Que agora já não se pode dizer nada, que é tudo racismo. Que qualquer dia, depois do Padre António Vieira e dos Descobrimentos, já não temos nada com que nos orgulhar. E outros dislates parecidos. Felizmente, durante a semana, a CNN considerou o caldo verde uma das melhores sopas do mundo, o que deve ter equilibrado o orgulho pátrio, dado a grandes oscilações.

Em simultâneo, a investigadora Vanusa Vera-Cruz Lima produzia afirmações, com pinças, sublinhando que não estavam em causa o autor e o valor da obra, mas apenas passagens, típicas do século XIX, e pensamentos de personagens do romance que poderiam conter traços de racismo, sugerindo uma nota pedagógica no sentido de fomentar o debate nas salas de aula. Ou seja, uma hipótese de leitura, entre outras, onde a questão colonial é convocada. Uma banalidade. Ou não é normal que existam disposições racistas aos nossos olhos num livro sobre a elite lisboeta do final do século XIX e um império colonial que só existiu aos ombros dos negros e do ouro do Brasil?

Li Os Maias quando andava no secundário. Recordo-me das aulas onde se analisou, questionou e interpretou algumas passagens e características nucleares do livro, como é normal acontecer com qualquer obra, a partir do conteúdo, das personagens, da pedagogia dominante, do contexto e das próprias preocupações da professora e da época em que li a obra. A utilização da ironia, as classes sociais, a cultura, os interditos, o incesto e também o contexto colonial foram alguns aspectos abordados. Tive uma excelente professora — a Deolinda, infelizmente já falecida — e era a coisa mais normal do mundo, a partir de um livro, ela levar-nos a reflectir sobre o colectivo, o que nos rodeava, e a nossa própria existência.

Foi com ela — e com a Miriam, de Filosofia — que ganhei o gosto por pensar. Se elas dessem aulas hoje, tenho a certeza que, entre muitas outras inquietações, o racismo, tal como o classismo, estariam presentes na forma complexa e múltipla como transmitiam ensinamentos a partir das mais variadas obras. Não para doutrinar, certamente não para censurar, mas para provocar a reflexão através da análise. Não ser assim hoje, pelo que depreendo da polémica artificial acerca de Os Maias, é que é estranho. Parece que existe uma elite enfeitiçada com cristalizações ou com os encantos exclusivamente literários e formais do romance de Eça. No resto não se pode tocar.

O realizador João Botelho, que adaptou ao cinema Os Maias, afirmava em 2014 que o Portugal do romance era quase igual ao de hoje, e não andará muito longe da verdade. Uma sociedade de aparências. Estranho país, de vidas precárias e de desigualdades, mas que grita Ai! Valha-nos Deus! Não toquem no Eça, na herança colonial ou nos Descobrimentos, vivendo ainda imerso em sonhos de grandeza, incapaz de se alinhar com a realidade, reactivo perante quem quer cultivar a reflexão. O país já é, aliás, isso. Não existe uma totalidade perene, ao contrário do que nos fazem crer. Há diversidades em construção, onde coexistem, às vezes em consenso, outras conflituando, pessoas, grupos, narrativas. Há quem veja nisso, perda de identidade. Eu vejo enriquecimento.

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