Quando não há acesso ao acesso

É necessária uma acção a nível europeu que contribua para a redução dos tempos de acesso a novos medicamentos e que coloque os verdadeiros beneficiários destes no topo das prioridades, os doentes.

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Yves Herman/Reuters

“Acesso: acto de chegar ou de entrar. O mesmo que entrada.” Pela definição que o dicionário nos apresenta, acesso surge como uma palavra relativamente simples e fácil de definir. Contudo, quando associamos acesso à palavra medicamento, esta definição torna-se um processo complexo, com várias etapas e intervenientes, até chegar o momento em que, de facto, ocorre.

O caso mais recente associado à fibrose quística, amplamente divulgado e debatido nas redes sociais e meios de comunicação social, acaba por se encontrar intimamente ligado à questão do acesso ao medicamento. No entanto, esta ligação conduz a outro tópico que merece especial atenção e debate na área da saúde em Portugal e a nível europeu: o que é o acesso ao medicamento e como é que ocorre, efectivamente, o acesso à inovação terapêutica?

O processo inicia-se a nível europeu com a atribuição de uma Autorização de Introdução no Mercado, frequentemente abreviada para AIM. Esta fase de avaliação é conduzida pelo Comité de Medicamentos de Uso Humano da Agência Europeia do Medicamento, tendo como principal objectivo avaliar a eficácia e segurança de um novo medicamento. Após o parecer positivo deste Comité, segue-se um novo processo na Comissão Europeia para aprovação da AIM. Após este ciclo de aprovações europeu terminar, é atribuída uma AIM centralizada ao novo medicamento e este fica disponível em todos os países da União Europeia.

No entanto, este primeiro processo de avaliação realizado a nível europeu não é sinónimo de acesso ao novo medicamento. De um modo geral, em todos os sistemas de saúde europeus, os medicamentos são financiados em parte ou totalmente pelo Estado. Deste modo, é necessário que ocorra um processo de avaliação do financiamento do novo medicamento, com a respectiva avaliação terapêutica e económica, em cada Estado-Membro. Este processo irá culminar com uma decisão sobre o financiamento do medicamento e só depois da sua conclusão é que, efectivamente, se dá o acesso ao novo medicamento.

Em casos excepcionais, em que se verifiquem doenças para as quais não existem terapêuticas disponíveis, durante o processo de avaliação, o acesso ao medicamento é assegurado mediante autorizações excepcionais (AUE), efectuadas ao abrigo de Programas de Acesso Precoce. Os medicamentos são cedidos aos hospitais pelos titulares de AIM, estando isentos de encargos para o Serviço Nacional de Saúde. Assim, ainda que a avaliação do financiamento dos medicamentos não esteja finalizada, nos casos excepcionais, os doentes podem ter acesso aos medicamentos inovadores, isentos de custos, caso os pedidos de AUE sejam aprovados. Após a aprovação do financiamento de um medicamento, no caso dos medicamentos hospitalares, a sua comparticipação é assegurada pelo Estado a 100%, ou seja, na sua totalidade.

O processo completo de avaliação do financiamento de um medicamento inovador, de acordo com a legislação em vigor, deve decorrer em 180 dias de calendário, o equivalente a seis meses. Quando olhamos para os dados publicados a nível europeu sobre o tempo de acesso a novos medicamentos, ou seja, o tempo decorrido entre a decisão de AIM a nível europeu e a decisão de financiamento a nível nacional, vemos que o valor para Portugal corresponde a 711 dias, o que corresponde a cerca de 23 meses. Adicionalmente, os dados publicados para o período mais recente, entre Janeiro e Março de 2020, indicam que mais de metade dos processos de avaliação de financiamento de novos medicamentos não cumpre os prazos.

Desta forma, o processo de acesso a medicamentos está associado a um ciclo complexo, moroso e burocrático. A União Europeia encontra-se a elaborar uma proposta de legislação para que uma parte do processo, a avaliação terapêutica, possa decorrer a nível europeu, à semelhança do processo de atribuição de AIM. Contudo, e apesar de a sua aprovação ser uma das bandeiras da presidência portuguesa da União Europeia na área da saúde, desde 2018 que este documento se encontra a aguardar luz verde.

Assim, no caso dos medicamentos vemos que a definição de acesso é complexa e heterogénea a nível europeu. Apesar de haver um processo centralizado europeu, o acesso efectivo só ocorre após um processo nacional, com timings e metodologias diferentes entre países, acabando por condicionar o acesso efectivo dos doentes aos medicamentos. É necessária uma acção a nível europeu que contribua para a redução destes tempos de acesso e que coloque os verdadeiros beneficiários do medicamento no topo das prioridades, os doentes.

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