Retrato da ditadura enquanto natureza morta

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Perguntávamo-nos o que fazia um oceanógrafo na aviação do exército. É como levar um mergulhador para a montanha.” José Luis Miceli, testemunha no julgamento da morte de quatro pessoas durante a ditadura militar argentina (1976-1983)

Ciência do mal

As ditaduras não são só assassinas, também são cobardes. Têm receio do julgamento da história; sabem que a sua sanha contra os ditos “inimigos” da pátria se poderá voltar contra eles assim que se restituir a legalidade. Ou chantageiam amnistias e passam o pano branco no sangue do passado (como em Espanha, Brasil, Chile) ou sabem que o futuro poderá trazer-lhes dissabores pelo terrorismo usado como política de Estado. Por isso, matam, mas escondem, disfarçam: seja em centros de detenção ilegais, seja em formas de fazer desaparecer as provas dos seus crimes. E nenhuma elevou a prática a píncaros como a sanguinária ditadura militar argentina que inventou “o voo”, denunciado pela primeira vez no livro do jornalista Horacio Verbitsky El Vuelo, publicado em 1995. A ditadura que fez 30 mil mortos e desaparecidos em sete anos, criou uma forma tenebrosa de se libertar do peso dos corpos que ia acumulando: drogava os presos políticos e levava-os em aviões para atirá-los ao mar e ao rio de La Plata. José Luis Micelli, testemunha no julgamento de quatro desses assassinados, actualmente a decorrer nos arredores de Buenos Aires, revelou esta semana que os militares contavam com os préstimos de um oceanógrafo para saber das “correntes do mar e dos rios”, um tal capitão Delfín Varela, e assim garantir que quem partia nos voos da morte não dava à costa como cadáver de questões (alguns deram e foram rapidamente enterrados como desconhecidos). A ditadura militar argentina, um batalhão de ineptos para as coisas de governar (que incluiu a estúpida guerra das Malvinas), mas de inteligência maior no que toca à aplicação das mais obscuras formas de aniquilar uma parte significativa da sua juventude, contava com a ciência para garantir o sucesso de fazer desaparecer nas águas as pessoas que assassinou.

Ciro, o “coronel” malcriado

Ciro Gomes é um político alegadamente de esquerda cheio de tiques de coronel sertanejo. A sua última declaração desrespeitosa e demonstrativa do quanto o discurso lhe foge tantas vezes para o chicote é o insulto que dedicou a Dilma Rousseff, no dia da mulher. No final de uma entrevista ao portal UOL, questionado sobre o que pensava da ex-presidente do Brasil, o provável candidato do Partido Democrático Trabalhista (PDT) às presidências de 2022, afirmou que se tratava de “outro aborto que aconteceu na História brasileira”, termo que já usara para descrever Fernando Collor de Mello, o ex-Presidente que se demitiu antes de ser destituído. A expressão de mau gosto usada pelo já três vezes candidato derrotado à presidência, mereceu da ex-chefe de Estado uma resposta à altura que deve ter deixado Ciro Gomes à beira de um ataque de adjectivos deselegantes. Reivindicando o seu passado de lutadora contra a ditadura militar brasileira, ao lado de grandes figuras do PDT, Dilma Rousseff respondeu ao “gesto misógino e de carácter reaccionário” de Ciro Gomes colocando-o no seu devido cantinho da história: “Quem me atacou não faz parte desta história comum e tampouco afectará meu respeito pelo partido de Brizola, por seu actual presidente Carlos Lupi, que foi ministro do meu governo, por Alceu Collares e por todos e todas ao lado de quem lutei”. E mais uma vez, como muitos à esquerda já fizeram, a ex-chefe de Estado lembrou a Ciro Gomes algo que o candidato do PDT passa o tempo a esquecer-se: “O que importa é que tenhamos sempre noção de quem são nossos adversários e de que eles estão do outro lado – o lado errado da história.”

Silêncio perpétuo

O escritor equato-guineense Juan Tomás Avila Laurel partilhava na quarta-feira um poema de Recaredo Silebo Boturu sobre a explosão de domingo num paiol em Banta, a maior cidade continental da Guiné Equatorial (a única ex-colónia espanhola na África subsariana), que resultou na morte de mais de uma centena de pessoas. “Silêncio. Negligência?/ Silêncio perpétuo. Cúmplice perpétuo./ Silêncio!/ O sangue corre agora,/ como então,/ também inutilmente, salpicando a terra./ Em baixo buscamos as palavras precisas/ entre os pedacinhos de Mami ou Francisco:/ raiva, tristeza, dor, impotência,/ mas a voz falha-nos. E não há réplica./ Em cima, a palavra única: ‘Negligência’.” As ditaduras têm destas coisas, principalmente uma como a de Teodoro Obiang, que dura há mais de 40 anos: só a fidelidade canina a quem manda e o silêncio são de primeira qualidade, o demais não se exige. E o que mais acontece num país pequeno cheio de petróleo é morrer por razões evitáveis. Como escreve Juan Tomás Ávila Laurel, “se os militares colocados neste quartel sabiam da existência do barril de pólvora, mas não fizeram nada, é condenável. Se não sabiam, é muito mais.” Mas a justiça na pátria de Teodoro e Teodorín, filho playboy que goza do melhor que a extorsão de todo um povo pode dar, é cega, não por independência, mas porque só abre os olhos quando o ditador manda. E, neste caso, se o ditador mandar, não será para investigação imparcial e, sim, para banquete cruel do cordeiro sacrificado. No país que só conheceu dono, nunca liderança, que do colono se viu entregue na independência a dois ditadores que foram controlando a vida e demonizando a educação, a tragédia não é um acaso, mas consequência. Para sofrer calado.

A audácia face ao dragão

Stephen Vines, um dos mais conhecidos jornalistas de Hong Kong, tem um novo livro sobre a cidade que ousou desafiar a maior ditadura do planeta e hoje paga com repressão o preço pelas suas veleidades democráticas. Diz Joshua Wong sobre Defying the Dragon: Hong Kong and the Largest Dictatorship que “é uma crónica detalhada da luta de Hong Kong contra a repressão”. E também o último suspiro de uma era. Tal como Wong, um dos mais conhecidos rostos do movimento pró-democracia, actualmente detido por conspiração para cometer subversão, também Hong Kong vive hoje agrilhoada pela lei de segurança nacional que a China implementou o ano passado na região de administração especial e que representa na prática o fim da política de “um país, dois sistemas”. O sonho imperial de Xi Jinping, e a sua ambição de fazer corresponder no palco internacional o poder político da China ao seu poder económico, sentiu-se desafiado por um território que passou 2019 e parte de 2020 a exigir democracia nas ruas. E a bota imperial abateu-se desapiedada sobre os sonhos democráticos do pequeno território. Porém, ao invés de força, o Presidente chinês, a China, o poder em Pequim mostraram uma dimensão de fraqueza que não se esperava para um país que ambiciona desafiar o poder político dos Estados Unidos à escala mundial. Que dragão é este que precisa de cuspir fogo para assegurar a todos que é realmente um dragão? Platão dizia que a dimensão de um homem se via na forma como usava o poder, o mesmo se aplica às nações.

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