Comunicação e percepção em tempo de “naufrágio”

Preparar as medidas para naufrágios é uma coisa, aplicá-las e vivê-las sem “terra firme” é outra, em especial no tempo das redes sociais e da política enquadrada por percepções e realidades subjectivas.

Na vida, o essencial é emitirem-se opiniões, a propósito de tudo
A Espuma dos Dias (1946), Boris Vian

“Protege-me do que eu quero”
Survival, 1983, Jenny Holzer

Nos adultos com longo percurso vivido, os pensamentos são as “lembranças” que mais lhes calham, sem escolha nem enfeites. Em recato forçado, a experiência pessoal, teórica e prática, da gestão de riscos e crises acompanha-me na observação do que ocorre. Uma crise mundial difícil de gerir, uma pandemia com riscos individuais, económicos e sociais com graves consequências interligadas. Uma gestão difícil porque enfrenta ignorâncias, impossibilidades e incertezas, que propiciam falhas e enganos involuntários, e exige um balanceio de medidas que limitam os desejos e sonhos. Um jogo sem conhecimento exacto das regras e do opositor. Mais difícil ainda porque à intensidade dos danos associa-se um factor muito relevante: a duração do acontecimento. Este factor induz o entrelaçamento do excepcional com o normal e a gestão dos riscos é facilmente perturbada pela dinâmica política nacional e pelos condicionamentos a algumas das liberdades.

O “naufrágio com espectador” pode ser uma representação estruturante da crise, uma metáfora iniciada com Lucrécio (De Rerum Natura, séc. I a.C.) e culminada na obra do filósofo Hans Blumenberg (1979) com o mesmo título. A metáfora do navio como imagem da “cidade” e da vida como navegação tem origens gregas longínquas, com Arquíloco e Alceu (séc. VII a.C.) e o muito conhecido “navio” de Platão (República, 380 a.C.), sendo continuada até ao presente por uma vasta plêiade de escritores que descrevem as facetas persistentes dos humanos quando em perigo. Acresce que a navegação e os naufrágios estão intimamente ligados à história do desenvolvimento da análise do risco, e a pandemia também tem “ondas”.

Defendo o envolvimento de diferentes conhecimentos e perspectivas, bem como uma comunicação eficaz na gestão de crises e riscos (tenho bem presente o estudo que efectuei ao efeito da comunicação de especialistas em Áquila, antes do sismo de 2009). Comunicar bem é um dom pessoal e uma ciência transfigurada agora em novo Santo Graal da política. A acusação de “comunicação contraditória, pouco clara ou ineficaz” é repetida como um mantra corriqueiro. Pode-se concordar com algumas das críticas mas fico perplexo como tantos cidadãos dominam esta ciência e a “arte de navegar”, repetindo publicamente o mesmo sem ter em conta a complexidade já referida. O timoneiro enfrenta muitos dilemas quando se pretende, simultaneamente, salvar as pessoas e a carga do navio e satisfazer o armador. Já Hesíodo (séc. VII a.C.) escreveu que “o dinheiro é a vida para os desgraçados dos mortais”. Face à ameaça de naufrágio, a prioridade da comunicação seria a de ajudar todos a encontrarem os “salva-vidas” ou as balsas do navio.

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"A Balsa de Medusa" (1818), de Théodore Géricault DR

Sem estar em causa a vigilância democrática e a liberdade de informação, convém, contudo, ter em conta o impacto no ânimo e na confiança dos navegantes em perigo. Abanar o timoneiro caso ele adormeça ou não reconheça a tormenta é louvável, mas insinuar com virulência (talvez um efeito do vírus…) o desejo de o mandar “borda fora” não parece ser aconselhável nem inteligente, pelo menos até se atingir “terra firme”. A indignação pode ser uma compensação resultante de sentimentos genuínos de frustração ou de desespero. A pulsão nas sociedades primitivas para culpar humanos pelas tragédias não controláveis está ainda presente. Houve tempo em que os humanos tentavam interpretar a vontade divina e aplacar a sua ansiedade implorando a deuses por salvação. Horácio (65 a.C.) escreveu: “No momento de desespero, de perigo iminente de morrer faz um voto que cumprirá se salvar da morte ímpia no mar.” No tempo presente cabe mais à ciência essa salvação redentora, mas o impacto da tecnologia na sociedade contemporânea impõe ao timoneiro um padrão de exigência na eficácia e antecipação de acções, talvez como uma “aplicação” digital sem incertezas.

Os manuais de comunicação de crise admitem um quadro ideal de cooperação para a sobrevivência e recuperação da população exposta, para divulgar e explicar medidas. Mas em muitos órgãos nacionais de comunicação social, em especial nos canais de televisão (TV), parece não ter sido este o padrão dominante ao persistirem em alarmismos desproporcionados e confundindo, por vezes, informação para especialistas com informação para todos. O património de conhecimentos científicos sobre a relação entre o modo de comunicação de massa e a percepção social parece não ser muito tido em conta, nem o cuidado pelos efeitos na moral dos navegantes ou por perturbações obsessivas compulsivas. Como se a mensagem não pudesse ser influenciada pelo mensageiro. Informar parece ser fácil e sem fim, conhecer é muito mais difícil. Não é por ingenuidade e certamente os profissionais da comunicação social conhecem bem os processos de estruturar percepções. A justificação da situação talvez esteja nos actuais modelos de gestão e concorrência da comunicação social. E também numa certa vontade de exibicionismo de comentadores.

A ética é muito invocada com pertinência, pois a história trágica dos naufrágios mostra heróis e vilões. O afundamento da fragata francesa La Méduse (séc. XIX), imortalizado pela pintura de Géricault (1818), é um exemplo. Doentes e velhos foram deitados ao mar, outros foram abandonados, outros salvaram-se. O poder do dinheiro também conta, como agora nalguns “navios” mais ricos (turismo vacinal ou a saúde como mercadoria), e os naufrágios também podem ser uma fonte de rendimentos, como no romance Naufrágios (1982), de A. Yoshimura. As tomas indevidas de vacinas são criticadas e clama-se por repressão judicial, mas no “paquete americano” a TV elogia a persistência dos que percorrem os centros de vacinação esperando pela sorte na distribuição, fora de horas, de vacinas excedentes. E quanto ao fantasma do critério idade, na “medicina de catástrofe”, há que lembrar os modelos económicos de custo-benefício de investimentos que também incluem a idade e a esperança de vida ou ainda uma posição filosófica divulgada nesta crise contra a protecção dos mais velhos, definida como “reversão antropológica” (Robert Redeker), que recorda o senicídio ou “ubasute” japonês e outras posições revoltantes.

Mas sou um observador esperançoso. A Humanidade e a ciência são promissoras e as intervenções das equipas médicas dos hospitais são um exemplo de pedagogia e confiança, de calma e estoicismo, garantindo a resiliência do sistema de saúde nacional. Face ao mar, façamos votos que tenhamos a sorte do “corvo Vicente”, do conto de Miguel Torga, mas há muito para melhorar na gestão de crises futuras, na comunicação, na saúde pública e numa economia mais estruturada e que possa abrandar “sem matar”. Mas sou realista: preparar as medidas para naufrágios é uma coisa, aplicá-las e vivê-las sem “terra firme” é outra, em especial no tempo das redes sociais e da política enquadrada por percepções e realidades subjectivas.

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