Como desliza a eutanásia rampa abaixo

O texto da Assembleia da República seria, pelos seus termos limitados, imune à rampa deslizante. Não é verdade. Por um lado, ninguém o pode garantir. Por outro, como tenciono mostrar e provar, a rampa deslizante está escrita e desenhada no próprio texto parlamentar.

Um dos problemas mais sérios da legislação que despenaliza a eutanásia e o suicídio assistido em certas e determinadas condições é que não parará aí: a brecha ampliar-se-á e, aos poucos, caminharemos para um portão escancarado. É o discutido fenómeno da rampa deslizante, que ocorreu, em maior ou menor grau, na meia dúzia de países que legalizaram a eutanásia.

Os promotores da lei pendente de promulgação ou veto têm insistido que não é assim: o texto da Assembleia da República seria, pelos seus termos limitados, imune à rampa deslizante. Não é verdade. Por um lado, ninguém o pode garantir. Por outro, como tenciono mostrar e provar, a rampa deslizante está escrita e desenhada no próprio texto parlamentar.

O Direito é uma grande conquista da Civilização, sem dúvida das maiores. Mas não é perfeito. É o melhor que pode haver, mas não é perfeito. Nos comandos legais, regendo as condutas humanas e sociais, quer se trate de determinações, quer de proibições de acordo com os valores vigentes, há uma divisão de tarefas entre o legislador e o julgador: a lei só trata do que é geral e abstracto; o julgador só trata do que é concreto. Quando queremos pôr o julgador a emitir leis, ou o legislador a aproximar-se de casos concretos, a asneira pode ser grande. O juiz sabe julgar o caso diante de si, mas não sabe emitir comandos universais. E o legislador não sabe decidir casos concretos, porquanto não dispõe da plenitude dos factos e circunstâncias que só um processo judicial pode coligir, para graduar a medida da responsabilidade ou isentá-la, conforme concluir o caso concreto. As leis têm que ter preceitos claros e assertivos, mais ainda quando se trata de garantias fundamentais. Os tribunais têm que dispor da ferramenta ampla que lhes permite, com base na lei e nos factos e circunstâncias, fazer justiça com a maior amplitude de julgamento e decisão. É assim, em geral, para todos os casos e matérias, nos termos das leis, nomeadamente penal e processual penal.

O Decreto da Assembleia, entrando numa tentativa de tipificação limitada de uma casuística concreta, quebra a garantia escrita na lei de ninguém poder matar outrem. A quebra deste interdito é potentíssima nos seus efeitos. É muito diferente viver-se numa ordem jurídica em que é proibido matar ou noutra em que é lícito fazê-lo, pertencendo a alguns o juízo decisor. Aqui, inaugura-se a rampa deslizante em grande estilo. E a novidade legislativa – a acção legal de matar – recebe logo um enérgico empurrão rampa abaixo.

O pedido na “morte a pedido” é, em boa parte, um pretexto e ilusão. Serve para abrir a porta da lei. No texto votado, a morte não será para todos os que a pedirem, mas para os que corresponderem às circunstâncias da lei e couberem no juízo dos decisores: o “médico orientador” com outros. Ou seja, a morte é para quem outros decidirem. É esta decisão de terceiros que, sob a pressão social, se alarga e amplia rampa abaixo, de mãos dadas com a banalização. Com pedido ou, nalguns casos, sem pedido. Tal como noutros países, assim nos acontecerá se a lei e o seu mecanismo entrarem em operação.

Primeiro, o texto parlamentar tende a modificar materialmente a Constituição, ignorando o preceito claríssimo do artigo 24.º, n.º 1: “A vida humana é inviolável.” Quem achar – gostaria de saber como – que a legalização da eutanásia é compatível com este preceito, derruba a garantia constitucional e, nesta matéria, escancara o futuro ao arbítrio legislativo, administrativo ou judiciário. É o que se quiser. A garantia constitucional terá caído e estará morta.

Segundo, altera artigos do Código Penal para autorizar determinadas condutas. Não actua por cláusulas gerais de exclusão de ilicitude, ou exclusão de culpa, ou circunstâncias atenuantes, ou isenção de responsabilidade. O que faz é afirmar lícito o acto de matar em certas circunstâncias, prescrevendo à partida a sua não punibilidade. O legislador assume um juízo geral que só um juiz, nos casos concretos, deveria fazer. Com isso, franqueia uma porta legal que, para uns casos, será ampla e, para outros, estreita. É o segundo empurrão para a rampa deslizante. Por um lado, entra por conceitos indeterminados para que o Presidente da República chamou a atenção. Por outro, casos que andam no debate social e não estão cobertos na fórmula legal virão exigir e insistir: “Também quero.” Outros mais a seguir. Eis mais um troço da rampa, por onde se deslizará mesmo sem alterações legislativas: junte conceitos indeterminados, pressão social e plano inclinado, aí tem mais rampa deslizante.

Terceiro, o Decreto não se limita a tornar não punível – isto é, lícita – a conduta de matar em certas circunstâncias. O Decreto estipula a instituição de uma complexa e pesada burocracia da morte, cuja regulação ocupa 90% do articulado. A morte, no sentido de a produzir, entraria pela Administração Pública adentro e aí tomaria assento permanente sob tutela de um ministro – e, claro, do primeiro-ministro também. Basta ler os 27 artigos em causa para perceber como a projectada maquinaria administrativa, a tal burocracia da morte, é o músculo e a própria passadeira da rampa deslizante em laboração. Acredito que, na Holanda, foi isto que aconteceu.

Se publicada, a lei, ao quebrar a garantia constitucional e da lei penal, vai remover a tranca ética nos comportamentos sociais e abalá-los profundamente quanto à vida humana. A seguir, mobiliza os médicos e enfermeiros para aplicarem a nova morte. A execução da morte passará a fazer parte do dia-a-dia dos hospitais e unidades de saúde; as classes médica, de enfermagem, de outros profissionais de saúde, terão que conviver com ela todos os dias, colegas com colegas, nos locais de trabalho, pois o Estado assim reformata os seus locais de trabalho. O mesmo com os psicólogos, mobilizados para apoio psicológico aos profissionais envolvidos na execução da morte. Para viver, para sobreviver, todos, mesmo sem participar, terão de aceitar, conviver, desculpar, pondo parte de si dentro de uma espécie de armário mental – é humano.

Embora preveja a objecção de consciência, o texto da Assembleia anuncia irromper pela autoridade disciplinar das Ordens e quebrar o seu poder e a liberdade estatutária de definição deontológica. É uma grande violência histórica para estas classes profissionais, que, segundo creio, nem a ditadura – o tal fascismo – cometeu. Todos os que aplicarem a lei da eutanásia ficam livres de responsabilidade disciplinar perante as Ordens. Assim se alarga também a rampa.

Enfim, a burocracia. Para efeitos do Registo Clínico Especial e da CVA (Comissão de Verificação e Avaliação do Procedimento Clínico de Antecipação da Morte), cobrindo actuação, seguimento e fiscalização, são envolvidos diversos profissionais: médicos (“orientadores”, especialistas e psiquiatras), psicólogos clínicos, paramédicos. E são convocadas várias entidades: a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS), o Conselho Superior da Magistratura, o Conselho Superior do Ministério Público, a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Enfermeiros e o Conselho Nacional da Ética para as Ciências da Vida, além da inserção da CVA no perímetro da Assembleia da República. Quanto aos representantes das Ordens, mais uma ingerência dirigista: não podem ser objectores de consciência – é negada às Ordens liberdade de escolha de quem as representa.

Esta burocracia tem uma característica que salta à vista: os seus poderes são fracos quanto à consumação de cada caso; mas o peso é grande para efeitos de comprometimento institucional. As magistraturas, as Ordens, o CNECV, têm pouca intervenção real, mas estarão amarrados como o papagaio ao processo de administração pública da morte. Classes e instituições estarão envolvidas e comprometidas. Que extraordinário conforto para a rampa deslizante!

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