David e Dias

Se a estrela amarela tinha por objectivo a segregação racial, o “passe verde” tem na sua base a segregação médica. Mas segregação entre seres humanos é sempre nociva porque tem inerente a ideia de inferioridade de uns e correlativa superioridade de outros.

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Rui Gaudencio

Joana Amaral Dias, analista política que sempre esteve ligada à esquerda mas que muitos agora chamariam de negacionista neonazi, cometeu um pecado imperdoável e publicou nas stories do seu Instagram uma fotografia de uma estrela de David amarela com a inscrição “não vacinado”. As ovelhas portuguesas entraram em polvorosa, algumas ousando pedir desculpa em nome da psicóloga, como se porventura falassem por ela.

Como sabemos, a estrela de David amarela visava identificar os judeus na Alemanha nazi. Era uma ferramenta visível de segregação e discriminação. A comparação efectuada por Joana Amaral Dias não é da sua autoria nem é original. Em Telavive, vários manifestantes contra os novos “passes verdes” – um documento que identifica pessoas vacinadas e lhes permite livre acesso a espaços públicos – fizeram o mesmo paralelismo, usando estrelas amarelas no braço. E erguendo cartazes com idêntica analogia.

No artigo This is not a Green Passport, it is a black hole, os cientistas Aviv Segev e Asa Kasher escrevem: “O ‘passe verde’ reflecte uma política paternalista e arcaica que é inconsistente com os princípios democráticos e cívicos num estado esclarecido. A sociedade em Israel está suficientemente dividida, dilacerada por muitos anos de lutas políticas. A crise da coroa é outra convulsão social que ameaça a nossa integridade como uma sociedade e o ‘passe verde’ é um abismo, que irá aprofundar a fractura na sociedade israelita.”

Outros críticos desta nova medida israelita usam o termo apartheid porque cria um sistema a dois níveis e a história mostra que quando se cria uma divisão dentro da sociedade, isso conduz a agitação civil. Se for copiada a nível global, afectará os países mais pobres e vai enraizar a desigualdade. Irá também penalizar as pessoas que não podem ser vacinadas por razões médicas. Daí esta medida ser inaceitável do ponto de vista ético e legal.

Se a estrela amarela tinha por objectivo a segregação racial, o 'passe verde' tem na sua base a segregação médica. Mas segregação entre seres humanos é sempre nociva porque tem inerente a ideia de inferioridade de uns e correlativa superioridade de outros. É a violação ostensiva do princípio da igualdade e da não-discriminação. O ‘passe verde’ é a verdadeira sinalética de virtude: o seu portador é mais “limpo”, puro e superior ao não vacinado, que é “sujo”, infestado de doenças e contagioso. O que nos remete de novo para a estrela amarela. Que ofensas eram usadas contra os seus portadores? Os judeus são “baratas, ratos portadores de doenças e criaturas sub-humanas”.

Recordemos também os horrores médicos perpetrados sobre o povo judeu, usados como ratos de laboratório humanos por Mengele e outros facínoras. E que estão na origem da consagração do direito ao consentimento sobre actos médicos livre e esclarecido como postulado reconhecido por muitas ordens jurídicas.  

O Direito português não é excepção, onde o Código de Nuremberga (1948) e a Declaração de Helsínquia (1964) sobre princípios éticos aplicáveis às investigações médicas que incidam sobre sujeitos humanos estão em vigor. No âmbito da Organização Mundial de Saúde, refira-se a Declaração para a Promoção dos Direitos dos Pacientes, de 1994. A nível da EU, temos a Convenção sobre os Direitos  Humanos e a Biomedicina. Esta Convenção foi ratificada por Portugal em 2001 e um dos seus princípios fundamentais é o respeito pelo consentimento informado (artigo 5.ª: ―1. Qualquer intervenção no domínio da saúde apenas pode ser efectuada depois da pessoa em causa dar o seu consentimento de forma livre e esclarecida. 2. A esta pessoa deverá ser dada previamente uma informação adequada quanto ao objectivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e os seus riscos. 3. A pessoa em causa poderá, a qualquer momento, revogar livremente o seu consentimento).

Destaca-se ainda a consagração expressa do direito ao consentimento informado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. No Direito interno português, o art. 25 da Constituição da República consagra o direito à integridade pessoal, afirmando que “a integridade moral e física das pessoas é inviolável”, o art. 26, n. 1 estabelece o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e o n.º 3 garante a “dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização de tecnologias e na experimentação científica”. O direito à integridade moral e física e o livre desenvolvimento da personalidade são expressões concretizadas desse axioma fundamental que é a Dignidade Humana (art. 1º CRP).

Como explica André Gonçalo Dias Pereira: “(...) Afirmado que está o primado da dignidade humana, a impor um princípio da autodeterminação e do respeito pela integridade física e moral do paciente, só o consentimento devidamente esclarecido permite transferir para o paciente os referidos riscos que de outro modo deverão ser suportados pelo médico. Só a pessoa pode decidir o que é melhor para si, para a sua saúde e para o seu corpo.”

Não há dignidade humana sem autonomia corporal. Todas as pessoas têm o direito a escolher ou recusar um tratamento médico. Se o aceitam, o seu consentimento tem de ser livre e esclarecido, precisamente como o consentimento sexual: cada pessoa escolhe o que faz com o seu corpo. Mas se essa escolha é imposta ou se é coagida, se é produto de constrangimento, intimidação ou mesmo ameaça, então não é livre e, por conseguinte, não é válida. Há muito poucas diferenças entre um empregador exigir penetrar uma empregada contra a sua vontade com uma agulha ou com o seu pénis, como condição para a manutenção do emprego. Ambas são inaceitáveis e ilegais ao abrigo da lei nacional e internacional.

Acredito que alguns se choquem com esta comparação, a julgar pelas reacções das virgens ofendidas sobre o post da Joana Amaral Dias. Mas assim como a violência sexual é uma realidade endémica na nossa sociedade, também o autoritarismo começa a ser.

Paremos de olhar para o Holocausto como um acontecimento especial, único, incomparável e irrepetível. É comparável sim! E, infelizmente, já várias vezes repetido desde o fim da Segunda Grande Guerra: no Ruanda, no Camboja, na Bósnia Herzegovina, na China, no Congo, no Uganda e recentemente na China outra vez com o genocídio do povo uigur. E esta lista é meramente exemplificativa e não exaustiva.

O perigo de defendermos a incomparabilidade do Holocausto reside precisamente em não nos apercebermos quando regressar. E não nos iludamos: já está à nossa porta.

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