É realista e recomendável um crime internacional de ecocídio?

Para se ter noção das dificuldades associadas à introdução de um tipo de crime no Estatuto de Roma, é preciso perceber que o terrorismo internacional ainda hoje continua a ser proposto para integrar o conjunto de crimes visados pelo TPI.

Há dias, a The Economist deu ampla cobertura à hipótese de o “ecocídio” – a destruição de ecossistemas e do ambiente – poder ser reconhecido como crime internacional. Deu conta das dinâmicas desencadeadas por um grupo internacional de juristas no sentido de apresentarem brevemente à consideração do Tribunal Penal Internacional (TPI) a adopção de uma definição do tipo de um novo tipo de crime de ecocídio.

Importa dar conta que uma missão desta natureza reveste grande complexidade por duas razões (de ordem formal e de ordem política). Primeiramente, por questões relacionadas com as alterações necessárias a serem introduzidas. Actualmente, o Estatuto de Roma permite ao TPI a investigação e condenação por quatro tipos de crime diferentes: agressão, crimes de genocídio, de guerra e contra a humanidade. Estes crimes não foram escolhidos ao acaso: foram o resultado de longas negociações entre os Estados e são, na prática, a codificação de costume internacional e a repetição de crimes já previstos em convenções internacionais.

Porém, muitos não sabem que o TPI começou por ser idealizado na esfera da ONU enquanto tribunal internacional capaz de condenar e julgar grupos de crime organizado transnacional relacionados com o tráfico de droga e que rapidamente se tentou expandir o leque de competências materiais do TPI. No final, o consenso mínimo só foi possível abandonando os então previstos crimes de ingerência, de domínio colonial, de terrorismo internacional e, muito importante, de danos contra o ambiente.

Portanto, na versão de 1991 do Projecto de Código de Crimes Contra a Paz e a Segurança da Humanidade, a Comissão de Direito Internacional (CDI) previa um artigo 26.º que tipificava um “crime de dano severo e intencional contra o ambiente” e que considerava crime internacional a conduta através da qual alguém “causasse ou ordenasse que fossem causados danos severos, generalizados e com efeitos no longo prazo contra o meio ambiente”. Com este crime, a CDI pretendia sancionar tanto o emprego de métodos ou meios com a intenção deliberada de atentar contra o ambiente, como também aqueles que embora destinados a atingir pessoas ou bens materiais sejam aptos a produzir, paralelamente, efeitos nefastos contra o meio ambiente.

Em 1996, quando foi votada a redacção final dos crimes que integrariam a jurisdição do TPI, o texto do crime contra o ambiente já havia sido alterado, fazendo-o depender da condição de a saúde e a sobrevivência de uma população serem gravemente prejudicadas. Não obstante, o crime caiu por completo por objecção de vários Governos nacionais, muitos dos quais receosos que incidentes como a tragédia de Chernobil pudessem determinar responsabilidade criminal internacional dos membros de um executivo.

O ecocídio acabaria por se desvanecer e passar a ser punido pelo TPI apenas em contexto de guerra ou, enquanto crime contra a humanidade, se a destruição ambiental tiver motivação política e visar atingir um grupo específico de pessoas. O ecocídio passou, assim, a ser extremamente difícil de ser punido. Porém, para se ter noção das dificuldades associadas à introdução de um tipo de crime no Estatuto de Roma, é preciso perceber que o terrorismo internacional ainda hoje continua a ser proposto para integrar o conjunto de crimes visados pelo TPI e, mesmo com o destaque dado à actividade da Al-Qaeda e do Daesh ao longo dos últimos 20 anos, nem assim foi possível integrar este crime.

As razões são formais e políticas. Por um lado, alterações ao Estatuto de Roma exigem maioria de dois terços dos Estados Partes e a experiência do passado com o ecocídio e o processo de aprovação e entrada em vigor das alterações quanto ao crime de agressão demonstram que a redacção não pode ser demasiado ambiciosa nem vaga sob pena de retrair o apoio dos Estados. Por outro lado, ao ser aprovada uma definição de um tipo de crime de ecocídio, se esta for consagrada no Estatuto de Roma dificilmente conhecerá alterações para as próximas décadas e acabará por excluir a sua aplicação dos Estados não Partes – o que inclui as grandes potências que são as grandes contribuidoras para os níveis de poluição mundial, ao mesmo tempo que são acusadas de alimentar actividades que concorrem directamente para o aquecimento global.

Em terceiro lugar, os Estados têm sido até resistentes a reconhecer a consagração legal do estatuto de “refugiado climático” a todos aqueles que se vêem forçados a abandonar os seus países de origem por terem a sua sobrevivência em perigo como resultado das alterações climáticas.

Finalmente, no caso dos crimes de terrorismo internacional, estima-se que existam actualmente mais de 250 definições entre todos os Estados-membros da ONU e não existe interesse, sequer, em celebrar um tratado internacional com vista a alcançar uma definição. Portanto, os Estados preferem manter a prerrogativa de definir e interpretar o fenómeno em função da forma como o terrorismo é internamente percepcionado.

Contudo, é aqui que surge um desafio para os que defendem a tipificação do ecocídio no Estatuto de Roma. No caso do terrorismo, perante a multiplicidade de conceitos e a impossibilidade de obter um instrumento de alcance universal, o Conselho de Segurança tem tido a iniciativa de introduzir nas suas resoluções uma definição própria de terrorismo, a qual serve de inspiração para a delimitação de um escopo útil para todos os actores internacionais, uma vez que as resoluções deste órgão da ONU produzem efeitos vinculativos para todos (sem excepção).

Será este um caminho a seguir para o ecocídio ou deve a comunidade internacional apostar antes numa redacção vaga e de aplicação questionável aos “clientes” tradicionais do TPI, como são os Estados com menor proeminência internacional?

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