Tirar a cabeça da areia

há uma maior probabilidade de condenação por crime de violência doméstica quando a vítima é mulher e o agressor é julgado em tribunal singular por uma juíza. Esta conclusão impele a ir mais fundo na análise.

Em 2017 e 2018, a justiça foi severamente condenada por decisões judiciais que motivaram dúvidas sobre o respeito dos princípios da igualdade e não discriminação de género nos tribunais. No rescaldo da polémica, que por vezes ultrapassou os limites do debate racional, ficou a acusação que os tribunais protegem os homens agressores e discriminam as vítimas mulheres. De entre várias possibilidades de reagir, havia que escolher a mais responsável, mesmo que pudesse não ser a mais cómoda e que alguns dissessem que era a mais arriscada. Esconder problemas não é solução para nada. Diante da suspeita de uma tal falha constitucional, era preciso (como escrevi em 27/2/2019, “Os dois lados do espelho”, PÚBLICO) encontrar respostas para três questões fundamentais: há discriminação de género nos tribunais? As decisões variam em função do género dos julgadores? As sentenças são demasiado lenientes?

Essas respostas não podem basear-se em palpites inflamados sobre casos isolados. Têm de se fundamentar numa análise da realidade, séria, objectiva e comprovável por métodos científicos. Fizeram-se dois trabalhos: Estudo avaliativo das decisões judiciais de violência doméstica e violência sexual contra adultos” da Escola de Criminologia da Faculdade de Direito do Porto, que analisou 369 decisões proferidas entre 2015 e 2019 e Estudo descritivo dos acórdãos proferidos em recurso nos crimes de violência doméstica, do Grupo de Trabalho para a análise da jurisprudência sobre violência doméstica, que verificou 270 acórdãos proferidos em recurso, dos anos de 2005 a 2019.

As primeiras conclusões foram conhecidas no Dia Internacional da Mulher:

- há uma elevadíssima taxa de condenações por crimes de violência doméstica e violência sexual, em regra com agressores homens e vítimas mulheres;

- mesmo onde há uma preponderância das penas de prisão com execução suspensa, mais visível nos crimes de violência doméstica que nos de violência sexual, a resposta dos tribunais é determinada pela aplicação dos critérios legais estabelecidos para a fixação das penas e do seu regime de execução;

- as sentenças e acórdãos não evidenciam sinais de tratamento desigualitário nem linguagem reveladora de preconceitos discriminatórios;

- as decisões dos tribunais não são influenciadas por factores de motivação não legais, como o género, a nacionalidade, o estatuto pessoal e a profissão de agressores e vítimas (se estes factores fossem preponderantes para a determinação das penas indiciariam práticas discriminatórias);

- há uma maior probabilidade de condenação por crime de violência doméstica quando a vítima é mulher e o agressor é julgado em tribunal singular por uma juíza, embora depois na fixação da pena não se verifique esse desfasamento.

Esta última conclusão, que está, de resto, no essencial, em linha com os resultados de estudos semelhantes feitos noutros países, impele a ir mais fundo na análise. É seguro que a desproporção não resulta do facto de haver mais juízas que juízes em primeira instância, pois esse factor foi tido em conta. Não há, por outro lado, razão cientificamente válida para encontrar a resposta na afirmação mais intuitiva, que as mulheres são mais sensíveis a esta criminalidade por se identificarem mais com as vítimas. O estudo simplesmente identifica uma diferença estatística, sem indicar as suas causas, pelo que é especulativo tentar adivinhá-las.

Os relatórios finais destes trabalhos serão publicados em breve e poderão ser verificados e sujeitos ao contraditório. Para já, o que fica de relevante são 4 ideias: a crítica, mesmo que exagerada, é não só legítima como salutar, porque pode influenciar as instituições e levar à reflexão interna e à correcção de práticas; não há razão para os cidadãos não confiarem na justiça, que cumpre adequadamente os parâmetros constitucionais da igualdade de género; pode haver na formação das percepções públicas uma dessintonia entre o que a lei diz aos tribunais para fazerem e o que as pessoas esperam deles; os estudos agora realizados não podem ser ponto de chegada, devem ser antes um ponto de partida para o aprofundamento de uma reflexão interna, mesmo que ela à partida se apresente como custosa e a exigir coragem.

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