Devi Sridhar: devíamos tratar a covid-19 como se fosse sarampo e não tolerá-la como a gripe

Se temos vacinas, devemos aproveitá-las para reduzir ao máximo as infecções pelo novo coronavírus, defende a professora de saúde global da Universidade de Edimburgo. O Verão será a grande oportunidade para isso — se soubermos estabelecer bem prioridades.

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Universidade de Edimburgo

A covid-19 deve ser tratada mais como a gripe ou como o sarampo? Como o sarampo, defende Devi Sridhar, professora catedrática de saúde global na Universidade de Edimburgo, que defende que pelo menos na Europa, nos países ricos, devia haver a ambição de erradicar esta doença, ou pelo menos reduzi-la a níveis muito baixos. “Se não tivéssemos vacinas, compreendia o argumento de que tínhamos que aprender a viver com a covid-19, não havia outra forma. Mas temos vacinas, por isso temos de elevar a exigência, temos de ser mais ambiciosos”, afirma.

Norte-americana mas radicada na Escócia, Devi Sridhar tornou-se uma figura mediática no Reino Unido. Faz parte do grupo consultivo para a covid-19 do executivo escocês de Nicola Sturgeon, e integra o núcleo da Royal Society que contribui para o SAGE, os especialistas que aconselham o Governo de Boris Johnson. Para o público britânico será mais importante a sua presença constante nas redes sociais – e nos media – para falar sobre a ciência desta pandemia que vira as nossas vidas do avesso.

Por exemplo, esta questão de saber se a covid-19 deve ser tratada mais como a gripe ou o sarampo entroncou com declarações feitas por outros conselheiros científicos do Governo britânico de que o novo coronavírus deveria tratado mais como a doença sazonal que infecta milhares, mas com a qual aprendemos a viver, vacinando parte da população, do que como a doença altamente infecciosa e que pode deixar sequelas graves ou causar a morte (sarampo). Ela entrou na discussão e continuou o raciocínio nesta conversa ao telefone com o PÚBLICO.

“A covid-19 não é como a gripe. É mais parecido com a SARS [síndrome respiratória aguda grave, causada por um coronavírus semelhante ao SARS-CoV-2, menos infeccioso mas mais letal]”, diz Devi Sridhar. “Em Inglaterra, estão a dizer que é preciso aceitar 30, 40 mil mortes por covid-19, porque o importante é garantir que os hospitais não entram em colapso”, explica. “Mas na Escócia dizemos que isto não é aceitável, temos de baixar os níveis todos. Só assim poderemos retomar a economia.”

Esta é a diferença entre encarar a covid-19 como a gripe ou como o sarampo. 

O que Devi Sridhar defende é que a covid-19 não seja tratada como algo tolerável – uma epidemia de gripe – mas como algo insuportável – um surto de sarampo, uma doença que deixa marcas e pode matar e que tem de ser abafado rapidamente, para que não alastre.

São duas estratégias completamente diferentes: com a gripe, não há campanhas intensas para vacinar pessoas com 30, 40, 50 anos, diz a cientista. “Porque consideramos que podemos ter uma epidemia descontrolada de gripe entre as pessoas jovens. Só vacinamos os que têm menos de cinco anos, talvez crianças da escola, porque estão a espalhar a infecção, e pessoas muito idosas”, explica.

Mas a covid-19 exige-nos mais. “Podemos fazer as vacinas chegar a toda a gente – até porque os ensaios clínicos com crianças estão a começar,”, sublinha. “Vamos ver este debate em muitos países – entre viver com o vírus e tentar reduzi-lo ao mínimo possível”, vaticina Devi Sridhar

O Verão será uma grande oportunidade para fazer baixar o número de casos – e mantê-los baixos, com vacinas e testes. “Se mantivermos o R0 abaixo de 1, teremos uma epidemia em declínio. Este Verão é uma oportunidade para controlar os números. Todas as segundas vagas pandémicas na Europa foram no Inverno”, frisa. “Temos a hipótese de afastar o risco de uma nova vaga pandémica e outro confinamento no próximo Inverno – ninguém quer isso.”

Antes, terá de se ultrapassar obstáculos próprios do Verão: o desejo de os europeus que passaram o Inverno confinado de terem férias ao sol, de viajar. “Só o poderemos fazer com os passaportes de vacinação”, diz a especialista em saúde global da Universidade de Edimburgo. Mas perante notícias de milhares de britânicos a quererem reservar já as suas férias no Sul da Europa, Portugal incluído, Devi Sridhar fala em prioridades.

“Acho que por ora estamos a querer correr antes de conseguirmos andar. No Reino Unido toda a gente ficou em casa, os locais de trabalho encerraram, mas as escolas estão a começar a reabrir. Não podemos ir a casa uns dos outros, os restaurantes estão fechados, e estamos já a sonhar com as próximas férias em Maiorca! Esperemos que em breve seja possível ter essas férias, mas temos de começar pela reabertura das escolas, por voltar ao local de trabalho. Quando houver um número suficiente de pessoas vacinadas, então viajar pode tornar-se seguro. Se isso vai acontecer este Verão, depende da velocidade a que vacinação acontecer noutros países”, sublinha.

Na Europa, a vida “normal” pode não demorar muito a regressar. “Quando me perguntam quando é que na Europa poderemos recuperar a nossa vida, respondo que teremos sorte em tê-la de volta nos próximos seis a oito meses”, responde. “Mas acho que a pandemia vai durar mais um ano ou dois, pelo menos. Depende de quão rápido consigamos vacinar as pessoas em todo o mundo.”

Sendo realista, a covid-19 tende a desaparecer do mundo rico e a tornar-se uma doença endémica do Sul global pobre, diz a professora de saúde global. “A tuberculose é endémica, a malária é endémica. Temos surtos de peste em Madagáscar, de febre-amarela no Brasil, há febre de Lassa na Nigéria, há muitas doenças em países pobres que não são um problema para nós no mundo rico. O ébola está de volta à África Ocidental. Acho que é nesta direcção que a covid-19 está a dirigir-se”, explica.

Diz ter esperança de que quando os países ricos conseguirem vacinar a sua população vão ajudar os mais pobres a vacinar-se. “Vai haver um tremendo impulso para enviar vacinas para todo o mundo. E temos tantas vacinas, e há mais a caminho. Neste momento a questão é se conseguimos produzir doses suficientes e como as distribuímos. Logo que Portugal e o Reino Unido sintam que os seus cidadãos estão seguros, vão ajudar outros países”, afirma.

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