10 lições de uma pandemia: um ano de aprendizagens

Há uma nova cultura de trabalho para promover e novas competências para aprender e exercer. Se mais nada nos motivar, devemos pensar no que queremos deixar às próximas gerações.

"Qualquer um pode partir pedra, mas nem todos sabem o que fazer com ela”

Há um ano vendeu-se a percepção de preparação perante uma pandemia, mediante a imagem positiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS), bons indicadores de saúde em todas as fases de vida sobretudo face ao nível de investimento, uma rede capilarizada de serviços de saúde e, assinale-se, um Programa Nacional de Vacinação indubitavelmente entre os melhores a nível mundial.

Problema: não, efetivamente não estávamos preparados para uma pandemia e, face a experiências anteriores, existiram avisos.

Março foi salvo pela habitual postura defensiva dos cidadãos portugueses perante a situação adversa nos casos italiano e espanhol. A opção governamental pelo princípio de precaução fez o resto. Falhas de planeamento, de organização ou de cooperação entre instituições e profissionais ficaram para trás, por umas semanas. Mas o facto de estarmos perante uma crise sem paralelo no contexto da Saúde Pública não fez sobressair o melhor em todas as linhas de combate - as amarras da burocracia e de alguma estagnação ao longo da estrutura complexa e pouco ágil da administração pública não deixaram de existir. Adicionalmente, havia necessidade imperiosa de reforços de integração de novo capital humano e de ciclos de inovação mais robustos perante a necessidade. Também sofremos com anacronismos e feudalismos burocráticos nesse contexto.

Existe experiência acumulada dos serviços de saúde pública em lidar com ameaças infecciosas mas esta crise demonstrou não estarem capacitados, articulados ou munidos de real autoridade para além do expectável perfil de “tigre de papel” legal. A pandemia não aceita desculpas, castiga ineficiências e tudo aquilo que provocou lentidão nos processos poderá ser colocado em cima da mesa como possível responsável de custo em vidas e sofrimento.

Mas que lições para o futuro de um ano de vivência pandémica?

1. Reconhecer a resiliência de muitos profissionais de saúde, em todos os níveis, perante a adversidade e que adoptaram soluções flexíveis e ajustadas, muitas vezes sem esperar por burocracias e procedimentos anacrónicos e até cruéis em tempos pandémicos. A autonomia é uma mais-valia a retirar da pandemia. É essencial reforçar estruturas de Saúde Pública, procurando recursos por fusões institucionais, redução de níveis burocráticos e permitindo maior autonomia sempre que possível com os princípios de capacitação onde necessária e agilidade como orientação;

2. Enfrentar o obstáculo de problemas organizacionais que existem na administração pública - como força de trabalho envelhecida, falta de competências digitais, burocracias redundantes, decisões politizadas, entre muitos outros pontos negativos que apenas se tornaram mais evidentes face a um inimigo sem mercê. Os elos mais fracos, como sempre, foram prejudicados. Os serviços de saúde pública com maior capacidade de adaptação e de promover forças de trabalho intergeracionais, trabalho em rede [à distância] e com os parceiros da comunidade e que aceitaram a inovação operacional, tiveram maior resiliência;

3. Repensar organização do trabalho com maior destaque para o teletrabalho: menos deslocações, menos risco para trabalhadores e para terceiros, menos gastos, descentralização com possibilidade de menores custos de habitação em Porto e Lisboa. Fim das grandes deslocações para reuniões de trabalho, tornando-as episódicas, com poupanças para o erário público e sector privado;

4. Abraçar a multidisciplinaridade e menos corporativismo na formatação das respostas necessárias a uma crise. Particular enfoque na questão da comunicação de risco que ainda hoje carece de maior papel dos bons profissionais que temos em marketing, ciências da comunicação e ciências comportamentais. Adicionalmente concretizar o conceito teórico e necessário de One Health, dolorosamente sublinhado na possível origem desta pandemia e outras que possam surgir;

5. Apontar para reformas que juntem os saberes da logística e da actuação no terreno do Exército e da Protecção Civil à Saúde Pública, tendo em vista actuações mais céleres e dotadas de meios ajustáveis em contexto de sobrecarga. Criar espaços para saber especializado na Ciência de Desastres, em todos os seus componentes, com quadros próprios para o efeito;

6. Enfrentar a infodemia, o bombardear de rumores e de notas de desinformação, que criaram um ruído constante durante toda a pandemia. Explorar devidamente a integração das redes sociais e plataformas de comunicação na estratégia de comunicação, apostando em rapidez na resposta e profissionais próximos da comunicação. Estas plataformas têm tudo para reforçar a transparência e capacitar os cidadãos e profissionais com a informação mais robusta, de forma séria e rápida;

7. Planear de forma distinta as épocas sazonais de gripe (ou outras doenças transmissíveis com padrão sazonal) com, por exemplo, recomendação do uso de máscaras em locais públicos e serviços de saúde para evitar novos cenários de sobrecarga do SNS. A experiência desta pandemia demonstrou que, pela ausência de casos de gripe, podemos evitar pelo menos parte de cenários habituais;

8. Integrar os conceitos de transformação digital - é essencial repensar os serviços, procurando digitalizar a maioria dos processos burocráticos e manter esses processos como rotina da melhoria contínua da qualidade. Esta digitalização começa com a compreensão de que a recolha de dados tem de ser efetuada através de plataformas digitais, para evitar duplicação de trabalho e arquivos espúrios. Só desta forma poderemos aproveitar as mais-valias dos processos acelerados pelos fluxos digitais de informação e apoio da análise inteligente de dados nos processos de decisão;

9. Apostar na introdução de competências digitais dos profissionais de saúde poderá garantir maior preparação para futuras pandemias, e até revolucionar a medicina através do desenvolvimento das tecnologias associadas à telesaúde. Entrou agora no pensamento estratégico que é essencial aceitarmos estas novas ferramentas, que nos deram vacinas inovadoras, relatórios em tempo real, e deram ao cidadão mais informação de como se proteger e colaborar com as autoridades;

10. Normalizar modelos de análise observados nas reuniões do Infarmed: análises relativamente rápidas e precisas com base em algoritmos avançados. Esta parceria entre a academia e profissionais com conhecimentos de estatística avançada no SNS tornaram-se numa “arma” de apoio à decisão e de informação ao público. Só há uma forma de manter estes resultados: promovendo a cooperação interinstitucional. Este modelo organizacional e de inteligência de dados é exportável para outras áreas prioritárias da saúde e de gestão. Temos aqui uma oportunidade de ouro para melhorar os resultados de saúde, a transparência, a experiência dos utentes que passam pelos serviços (diminuindo desigualdades de acesso, p. ex.) e de otimizar a prestação dos serviços de saúde.

O uso de tecnologia e as parcas reformas institucionais que ocorreram por força da pandemia não resolveram todas as questões. Perante um cenário extremamente adverso, a tendência é aguentar até ao limite, pois o medo do desconhecido é sempre maior em relação à certeza e segurança que as rotinas nos dão. Estaremos melhor daqui a 12 meses? Depende das lições que aprendemos e capacidade de adaptação. Há uma nova cultura de trabalho para promover e novas competências para aprender e exercer. Se mais nada nos motivar, devemos pensar no que queremos deixar às próximas gerações.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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