O acidente de Fukushima não fez aumentar a incidência de cancros

Comissão de peritos da ONU actualizou relatório de 2013 sobre efeitos da radiação na saúde humana. Greenpeace diz que a maior parte do território ainda não foi descontaminado.

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Sacos com solo contaminado em Futaba, uma das zonas mais atingidas pela radiação LUSA/FRANCK ROBICHON

Uma comissão de peritos das Nações Unidas continua a dizer que a radiação libertada pelo acidente na central nuclear de Fukushima em 2011, após um terramoto e um tsunami devastadores, não parece estar a fazer aumentar o número de cancros na população da região do Nordeste do Japão. Foram detectados mais cancros da tiróide do que o normal, sim – mas esse salto deve-se aos métodos “ultra-sensíveis” na detecção do cancro, que fazem com que estejam a ser detectados casos que de outra forma passariam despercebidos, dizem os cientistas.

A Comissão Científica sobre os Efeitos da Radiação Atómica das Nações Unidas (UNSCEAR, na sigla em inglês) divulgou, nesta terça-feira, o seu relatório de 2020, que actualiza os dados do relatório de 2013. E o que diz é que desde o estudo de 2013, “não foram documentados efeitos adversos entre os residentes de Fukushima que possam ser directamente atribuídos à radiação resultante do acidente”.

O relatório reuniu e analisou “toda a informação científica relevante (literatura científica submetida a revisão pelos pares e dados de monitorização da radiação nas zonas afectadas pela tripla tragédia que afectou o Nordeste do Japão a 11 de Março de 2011, há uma década: um sismo de categoria 9 na escala de Richter, a que se seguiu um poderoso tsunami e, finalmente, a destruição da central nuclear de Fukushima, que obrigou o Governo japonês a dar ordem de retirada a uma população de 160 mil residentes.

Esta zona era considerada “o celeiro do Japão”, pela riqueza das suas explorações agrícolas e a contaminação das terras, e das águas com elementos radioactivos libertadas pelo acidente na central trouxeram muitos prejuízos. A operação de limpeza posta em prática pelo Governo suscitou sempre dúvidas – e continua a ser polémica, como testemunha um outro relatório, desta feita da organização ecologista Greenpeace, que tem por título O Mito da Descontaminação e Uma Década de Violações dos Direitos Humanos.

Para a Greenpeace, dez anos depois do pior acidente nuclear civil desde Tchernobil, a maior parte dos terrenos que o Governo japonês identificou como tendo ficado contaminados durante as várias semanas em que os reactores acidentados estiveram a libertar radioisótopos para a atmosfera não deixaram de estar contaminados. Só 10% a 15% destas áreas foram descontaminadas, apesar de para algumas ter sido levantada a ordem de evacuação, e as populações encorajadas pelo Governo a regressar.

A limpeza é particularmente difícil porque grande parte da prefeitura de Fukushima (divisão administrativa que inclui vários municípios) é uma área florestal montanhosa, o que dificulta a sua limpeza – e pode favorecer a recontaminação radioactiva, diz o relatório da Greenpeace.

Se regressarem às suas casas, como o Governo os está a exortar, os habitantes deslocados pela tripla tragédia do Nordeste do Japão de 2011 ficarão expostos a riscos acrescidos de cancro.

Mas o UNSCEAR – que é composto por 52 cientistas de 27 países – avaliou a incidência de cancro da tiróide na região de Fukushima em busca de uma relação com a exposição à radiação libertada pelo acidente da central nuclear e conclui que “não é provável que seja discernível em qualquer dos grupos etários considerados, incluindo crianças e aqueles que foram expostos in utero”, diz o comunicado de imprensa em que apresenta o longo relatório.

Os cientistas que trabalham sob a égide da ONU sublinham que houve um grande aumento na detecção de cancros da tiróide logo nos 300 mil indivíduos que tinham menos de 19 anos na altura do acidente. Essa tendência foi confirmada nas quatro levas de busca activa por esta forma de cancro na população jovem realizadas a partir de Abril de 2011 (através de ecografias ultra-sensíveis, aspiração para citologia de quistos que tivessem mais de 20 mm, ou nódulos com mais de 5 mm, para despistar a sua eventual malignidade).

Isto permitiu detectar mais cancros da tiróide. “Mas a maioria dos autores atribuem a diferença à despistagem ultra-sensível”, que inclui exames clínicos para verificar se quistos e nódulos são malignos de forma universal para esta população. “Quando a República da Coreia introduziu uma despistagem universal da tiróide em adultos, que não esteve relacionada com qualquer episódio de exposição à radiação, a taxa de incidência do cancro da tiróide aumentou imenso, embora a taxa de mortalidade devido a este cancro não tenha crescido de forma apreciável”, escrevem os cientistas, a título de exemplo.

“Estas observações sugerem que o aumento da incidência [de cancro da tiróide nos jovens da região de Fukushima] podem dever-se a um sobre-diagnóstico, isto é, detecção que de cancros da tiróide que não teriam causado sintomas ou morte durante toda a vida de um indivíduo”, concluem.

No mesmo sentido, os cientistas dizem “ser pouco provável que se detecte” um aumento da incidência de outros cancros em trabalhadores da região, expostos a radiação, como leucemias e outros tumores sólidos, para além da tiróide.

Além disso, escrevem os peritos da ONU, não há, até agora, “evidências credíveis de um excesso de anomalias congénitas, nascimentos antes do tempo, morte do feto, ou de bebés com peso baixo que possam ser relacionados com a exposição à radiação”.

O relatório da Greenpeace alerta, no entanto, que a contaminação radioactiva do território – sobretudo por césio radioactivo – vai persistir. “É ainda uma ameaça muito real para a saúde humana a longo prazo e o ambiente”, e inclui áreas agrícolas, que eram usadas para cultivar arroz e outros produtos. O facto de o Governo japonês estar a incentivar o regresso a estas terras, anunciado que estão descontaminadas “pode representar coerção económica”.

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