Juízas condenam mais em casos de violência doméstica do que colegas

Pena de prisão suspensa aplicada em 88% dos casos de violência doméstica em que houve condenação dos tribunais de primeira instância, indica estudo da Escola de Criminologia da Universidade do Porto apresentado esta segunda-feira.

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Uma das manifestações que ocorreram no rescaldo da polémica que envolveu o juiz Neto de Moura. Miguel Manso

Quando decidem de forma individual, as juízas da primeira instância condenam bastante mais do que os magistrados homens em casos de violência doméstica. Isso mesmo concluiu um estudo da Escola de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, apresentado esta segunda-feira no Tribunal da Relação do Porto. A iniciativa, que integra uma conferência internacional intitulada Justiça, Igualdade e Género, é da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) e ocorre no dia em que se celebra o Dia Internacional da Mulher. 

Este estudo foi realizado no rescaldo da polémica que se instalou no país em finais de 2017 após ser conhecida uma decisão judicial relatada pelo juiz Neto de Moura e assinada com outra colega, ambos magistrados do Tribunal da Relação do Porto, que desvalorizaram uma agressão grave praticada pelo marido contra a “mulher adúltera”, num acórdão de Outubro de 2017. Na argumentação da decisão, lia-se que “a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher” é vista “com alguma compreensão”. Outras decisões polémicas surgiram a reboque, o que levou a ASJP a considerar que era importante reflectir sobre o tema. 

O resultado chegou três anos e meio depois. O estudo analisa 212 decisões judiciais em casos de violência doméstica, seleccionadas aleatoriamente, tanto nos tribunais de primeira instância, como nas Relação e no Supremo Tribunal de Justiça, proferidas entre 2015 e 2019. A par desta investigação, foi feita uma outra, com uma amostra de 157 sentenças ou acórdãos, em processos de violência sexual contra adultos. 

"No crime de violência doméstica, apenas na decisão de condenação são identificadas duas situações que relevam uma tendência para discriminação: a condenação ocorre numa proporção superior quando a vítima é mulher em comparação com as escassas vítimas homem e, nos tribunais singulares, a taxa de condenação das juízas é superior à dos juízes”, afirmam Jorge Quintas e Pedro Sousa, os autores do estudo, num resumo das conclusões. A diferença é expressiva: 71% das juízas que decidiram sozinhas condenaram os suspeitos de violência doméstica (num universo de 59 decisões), o que só aconteceu em 45,5% dos casos em que o julgador foi um único homem (num universo de 22 sentenças). “A probabilidade de alguém ser condenado por um crime de violência doméstica é três vezes superior quando a decisão é proferida por uma mulher”, destaca Pedro Sousa, que apresentou o estuda sobre violência doméstica. O investigador realça, no entanto, que quanto à aplicação das penas os dados não mostraram diferenças significativas em função do sexo do julgador. “Juízes e juízas aplicam o mesmo tipo de penas”, conclui. 

Manuel Ramos Soares, presidente da ASJP, ficou surpreendido com o facto da taxa de condenação variar em função do sexo do julgador. “Este resultado impele-nos a ir mais fundo nos estudos. Temos que perceber o que justifica a diferença”, sustentou, sublinhando que este estudo não foi um ponto de chegada, mas será um ponto de partida. 

O peso de condenados por violência doméstica tem subido no total de condenados nos tribunais de primeira instância. Em 2010, representavam menos de 2% do total, uma percentagem que subiu para 4,5% em 2019, lê-se no estudo. Nesse período, o número absoluto de condenados por violência doméstica subiu de menos de 1500 em 2010 para mais de 2100 nove anos mais tarde. 

Os dois investigadores da Escola de Criminologia do Porto notam que tanto os crimes de violência doméstica como os sexuais “resultam predominantemente em condenações, sendo a taxa de condenação crescente com a progressão nas instâncias judiciais'’. “Para ambos os tipos criminais, as absolvições ocorrem sobretudo com fundamento na falta ou insuficiência de prova”, referem Jorge Quintas e Pedro Sousa. 

Apesar das condenações serem maioritárias nos casos de violência doméstica (66% nos tribunais de primeira instância, um número que sobe para 75% nas Relações e atinge 100% no Supremo), há um terço dos acusados por violência doméstica que acaba absolvido na primeira instância. Deste grupo, 30% acabam condenados por um outro tipo de crimes (os juízes podem condenar os arguidos por um tipo de crime diferente do que consta na acusação) ou por outro ilícito que também lhes era imputado. Noutros 20% a absolvição resulta do facto de os juízes considerarem que está em causa um outro tipo de crime - por exemplo ofensas à integridade física simples - que implica a existência de uma queixa e esta nunca foi feita ou foi entretanto retirada. Metade dos acusados no tal terço é simplesmente absolvida. 

​Premeditada e bastante severa

Se há aspectos comuns aos dois tipos de crimes, também há outros que os distinguem. “Os crimes sexuais são geralmente episódios pontuais, ocorridos no âmbito extra-familiar. Pelo contrário, os crimes de violência doméstica ocorrem de forma continuada e, especialmente, entre parceiros íntimos. A violência doméstica tende a ser premeditada e bastante severa, considerando o modo de actuação e o dano causado”, concluem os dois investigadores.

A par da apresentação do estudo da Escola de Criminologia foi igualmente divulgado uma análise de jurisprudência sobre violência de género, que avaliou mais de 270 decisões de tribunais superiores no âmbito de recursos em casos de violência doméstica, igualmente entre 2015 e 2019. Neste caso, contudo, a selecção não foi feita de forma aleatória, já que teve origem na base de dados de jurisprudência do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça que assenta numa pré-triagem das decisões cujos critérios não são uniformes.

Tanto o estudo da Escola de Criminologia como a análise estatística da jurisprudência dos tribunais superiores apontam para uma aplicação maioritária da pena de prisão suspensa, nos casos em que há condenação. “É certo que a pena de prisão suspensa teve uma aplicação maioritária, tendo sido mobilizada em 66,5% dos casos”, nota a juíza Carolina Girão, que coordenou o grupo de magistrados que analisou as decisões com base numa grelha pré-estabelecida. A percentagem não é muito diferente da identificada no estudo da Universidade do Porto relativamente às penas aplicadas nas decisões judiciais proferidas pelos tribunais da Relação (69%), mas é bem menor do que os 88% contabilizados na primeira instância.

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