Efemérides e epidemia da desigualdade

O comunismo, enquanto reprodução de uma sociedade justa e igualitária, ficou sempre aquém do esperado: que o digam até as mulheres. Mas que seria do mundo sem o Manifesto Comunista, sem as teses de Marx, sem a ordem planificadora e legitimadora de um Estado, sem Constituição da República promotora de direitos e deveres comuns.

Passam mais de duas décadas sobre uma crónica escrita por Victor Cunha Rego (A luta de sempre), na qual se lê: “Foi o Manifesto [Comunista] que impulsionou os sindicatos modernos e levou os trabalhadores a exigirem uma parcela do poder político. Se, como escreve Richard Rorty, substituirmos ‘burguesia’ pelos vinte por cento que controlam a imensa riqueza entretanto gerada e o ‘proletariado’ pelos outros oitenta por cento, muito do que ficou escrito no Manifesto mantém a sua lógica e veracidade”. Para mal de muitos, Marx está vivo, a luta de classes é uma exigência, o mundo é um desconcerto, e eu, como diz o outro, não me vou sentindo grande coisa – leia-se, a propósito, o iluminante artigo de Maria João Guimarães, Epidemia da desigualdade, aqui no PÚBLICO de 5 de Março.

Sabemos – creio ser uma evidência – não ser possível mudar o Homem (esse Homem Novo mítico e ideal). Mas, transformando as regras do mercado, instituindo leis mais justas, estabelecendo a condição indispensável e inalienável do Estado como detentor dos serviços fundamentais de produção material e imaterial (o que inclui Saúde, Educação, apoio à Cultura, Trabalho e Rendimento), coexistindo com os bens de índole privada, ainda que não mudemos a natureza humana (aparentemente mais selvagem do que boa), enquadramo-la na matéria social cuja fronteira separa o admissível do inadmissível. Não está em causa destituir o Homem do livre arbítrio, à semelhança da distopia de Anthony Burgess, mas apartá-lo da visão medieval das hierarquias e da teologia do céu e do inferno. Há lições sociais que nos podem melhorar, inibindo ímpetos mais hediondos, eternas e intrínsecas sombras humanas.

Nos anos 80, faziam-se estudos sobre o conflito (e revisionismo) de ideologias nos manuais escolares. Concluía-se, por exemplo, que autores canónicos do neo-realismo (Soeiro Pereira Gomes, Redol, José Gomes Ferreira) iam sendo rasurados por uma nova censura liberal de assumida descrença ideológica, como se extintos então pela velha mão djanovista que estabelecia o moderno valor moral simplificado e “apagava”, à maneira soviética, os rostos de uma cultura realista e social. Findavam, para quem se lembra, os Esteiros desta maneira: “Mas a voz afastava-se. Gaitinhas-cantor vai com o Sagui correr os caminhos do mundo, à procura do pai. E, quando o encontrar, virá então dar liberdade ao Gineto e mandar para a escola aquela malta dos telhais – moços que parecem homens e nunca foram meninos”.

Celebramos o centenário do Partido Comunista Português e, por coincidência, o Dia Internacional da Mulher. No notável volume As Clandestinas, de Ana Barradas, pode ler-se: “O PCP, os anarco-sindicalistas e outras organizações políticas e sindicais ensinaram desde sempre as suas filiadas e simpatizantes a delegar nos homens a defesa dos seus direitos, com o argumento de que, uma vez instaurada uma ordem social mais justa, estes seriam tomados em consideração. Entretanto, elas deveriam servir de suporte e apoio à luta principal contra a exploração e não acirrar as contradições entre sexos. Idealizou-se um quadro de homens e mulheres proletários irmanados nas lutas pelo trabalho e pelo pão, em que se forjariam relações novas entre companheiros iguais. Ignorou-se o peso da opressão patriarcal anterior ao capitalismo e reforçada por este. Não se perguntava como poderia ser vitoriosa a luta anticapitalista enquanto metade dos explorados é oprimida pela outra metade [o sublinhado é meu]. Assim se educaram gerações de militantes e de mulheres que sinceramente acreditavam ser seu dever submeter-se a estas orientações, bem reveladoras do chauvinismo machista que sempre permeou todas as classes, incluindo os seus sectores mais avançados” – para aprofundamento das contradições do assunto, aconselho as Vozes Insubmissas de Isabel do Carmo e Lígia Amanso.

Bom, o comunismo, enquanto reprodução de uma sociedade justa e igualitária, ficou sempre aquém do esperado: que o digam até as mulheres. Mas que seria do mundo sem o Manifesto Comunista (que como o Novo Testamento falhou a tentativa de forjar o Homem Novo), sem as teses de Marx, sem a ordem planificadora e legitimadora de um Estado, sem segurança pública, sem Polícia e Exército, sem sindicatos, sem Segurança Social, sem Constituição da República promotora de direitos e deveres comuns, sem uma visão do mundo que implica a luta entre os monopolistas e a ética da humanidade (incluindo os direitos das mulheres, das minorias sociais e das questões que observam a plenitude da dignidade humana)? E, já agora, sem a Educação e as escolas onde tudo isto deve ser abordado? Teríamos já saído das cavernas?

Parafraseando Roland Barthes, a propósito do valor moral simplificado de Andrei Djanov, “o dinheiro é objectivamente bom; o homem lida com a bondade do dinheiro, não com o dinheiro em si”. Pois é. O mundo está novamente mais sombrio e os bolsos da maioria prosseguem vazios. As coisas são o que são e valem o que valem.

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