Consumidores, advogados e abutres (ou serão anjos?)

Sociedades de advogados estabelecidas passaram a chamar anjos brancos aos antigos abutres e espreitam com indisfarçável excitação a próxima oportunidade de defesa dos direitos dos consumidores portugueses.

Aqui há uns anos, quando pela primeira vez ouvi falar em fundos abutre (vulture funds), pensei tratar-se da última receita ambientalista para defender essa ave de injusta má reputação. Mas cedo vi entrar em cena o primeiro abutre. Tratava-se de um enérgico sexagenário norte-americano, membro da mais fina aristocracia da East Coast e que, numa idade em que outros, menos dotados de espírito empreendedor, se dedicam à filantropia, havia encontrado aquilo que esperava vir a ser a sua galinha dos ovos de ouro. Nada mais, nada menos do que financiar os honorários dos advogados ingleses que representavam um vendedor de armas “traído” por um governo da América Latina. Se o vendedor conseguisse receber os milhões a que dizia ter direito, o nosso abutre recuperaria o investimento, mais juros e um modesto uplift (prémio) de 30%. Não sei no que a coisa deu, mas anos depois um banqueiro amigo fez-me saber que boa parte dos bancos internacionais mais respeitados já tinha um fundo abutre. Percebi que o tema era sério.

Em dezembro passado, a moda entrou com estrondo em Portugal. Num gesto a todos os títulos notável, uma pequena sociedade de advogados — parece que hoje se diz uma boutique — anunciou publicamente ter intentado, no Tribunal da Concorrência, em Santarém, uma ação judicial contra a empresa Mastercard com o objetivo de reclamar uma indemnização de mais de 400 milhões de euros, por violação das normas da concorrência. A autora da ação é uma associação de consumidores que aparentemente aqueles mesmos advogados haviam constituído uns meses antes (a Ius Omnibus). Mas nada de juízos precipitados: a indemnização que o tribunal vier a decretar reverterá, diz a associação, para todos os utilizadores portugueses dos cartões emitidos pela Mastercard; a cada consumidor caberá o montante médio de €40, acrescenta a Ius Omnibus no seu site. E para os mais céticos até há vídeos da associação no YouTube a explicar tudo muito bem, coisa que me parece deveras inovadora no domínio do marketing dos serviços jurídicos em Portugal.

Dá-se o caso que a Ius Omnibus, talvez por ter apenas alguns meses de existência, precisou de obter de terceiros os fundos necessários para satisfazer as “despesas” desta inovadora aventura judicial. E ter-se-á lembrado do mecanismo agora chamado TPF, as iniciais da expressão inglesa third party funding, exatamente o mesmo fenómeno financeiro que me havia sido descrito há uma década como fundos abutre. A escolha recaiu num TPF sediado na Suíça, mas isso só pode acrescentar respeitabilidade a um esquema que consiste patentemente na tentativa de financeirização das decisões dos tribunais.

Pouco importa. A iniciativa da dita boutique foi de tal ordem bem acolhida pelas partes interessadas que duas semanas depois já estavam os mesmos advogados a intentar nova ação no Tribunal da Concorrência, agora contra a Super Bock, por outros tantos 400 milhões de euros. Desta vez um desconhecido fundo americano bancava as despesas do processo.

Perante este cenário em que subitamente estão em causa mais de 800 milhões de euros — destinados aos consumidores obviamente, mas também aos advogados da Ius Omnibus e aos prestáveis financiadores —, não espanta que a febre tenha rapidamente atingido mesmo as mentes mais serenas. Sociedades de advogados estabelecidas passaram a chamar anjos brancos aos antigos abutres e espreitam com indisfarçável excitação a próxima oportunidade de defesa dos direitos dos consumidores portugueses. Com alguma audácia, certos advogados falam destes interessadíssimos financiadores como “uma ferramenta para democratizar a justiça”.

Nada disto teria grande importância, não fosse estarem em causa manifestos conflitos de interesses, possíveis violações de normas de ordem pública, talvez práticas usurárias e, em particular, a reputação e o (chamemos-lhe residual) prestígio da advocacia portuguesa. Trata-se de uma profissão auto-regulada e que, como tal, tem um contrato implícito com a sociedade, tão ou mais importante do que aquele que cada advogado celebra com o seu cliente. É caso para dizer: Haja pudor, meus senhores!

Advogado. Presidente da associação ProPública — Direito e Cidadania

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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