A César o que é de César

O caso do parecer que andou perdido oito meses no Parlamento e de um desmentido que nunca existiu.

O leitor José Magalhães, que também é deputado à Assembleia da República pelo Partido Socialista, remeteu ao provedor um “protesto pela não publicação de qualquer peça noticiosa sobre o desfecho de um caso reportado pelo PÚBLICO” e indigna-se: “Embora os debates estejam acessíveis via Internet no arquivo digital do Canal Parlamento, dar voz a quem disse ao PÚBLICO que a AR dissera o que não disse, mas não publicar o desmentido, não é uma boa prática e não se coaduna com as vossas regras internas.” Refere-se o deputado José Magalhães ao caso da eventual incompatibilidade em que Rui da Silva Leal terá estado ao acumular as funções de vice-presidente do Conselho Geral da Ordem dos Advogados e de membro do Conselho Superior do Ministério Público, noticiado pelo PÚBLICO em 6 de Fevereiro.

“Nessa notícia”, afirma José Magalhães, “era referida uma alegada posição do Parlamento a favor de acumulação entre os cargos (…). Sucede que tal posição nunca existiu.

“Como foi ouvido pela Comissão de Assuntos Constitucionais antes de ser eleito e ninguém lhe perguntou nada sobre o tema polémico, acha o visado que a Assembleia quis abençoar a sua acumulação.

“O entendimento é claramente abusivo e a tentativa de criar um escudo parlamentar para desvalorizar a gravidade da opção tomada é um ato politicamente feio.

“O assunto foi levado pela mão dos deputados do PS à Comissão de Assuntos Constitucionais e também à Comissão da Transparência, que se pronunciaram contra o tal entendimento abusivo. E agora o mistério: por que razão este facto não foi até à data noticiado nas páginas do PÚBLICO?”

Solicitada pelo provedor a esclarecer a situação, a jornalista Maria do Céu Lopes responde:

“O deputado José Magalhães pretende que tivesse sido publicado um ‘desmentido’ sobre um assunto que a Assembleia da República não desmentiu.

“Vamos por partes. Um parecer do conselho consultivo da PGR considerava haver incompatibilidade na acumulação por parte de Rui da Silva Leal, indigitado pelo PSD, de cargos a tempo parcial no Conselho Geral da Ordem dos Advogados e no Conselho Superior do Ministério Público. O parecer foi enviado ao Parlamento e esteve oito meses esquecido numa comissão. Só foi descoberto quando o PÚBLICO o procurou, no início de Fevereiro deste ano (v. PÚBLICO, 6 de Fevereiro de 2021, “Parecer do MP contra exercício de cargo de advogado perdido oito meses no Parlamento").

“Na audição antes da eleição na AR, em Dezembro de 2019, Rui da Silva Leal avisou os deputados de que fora eleito na semana anterior para o Conselho Geral da Ordem e ninguém o questionou sobre a legalidade da acumulação dos cargos. Em Fevereiro, desvalorizou o parecer afirmando ao PÚBLICO (v. PÚBLICO, 6 de Fevereiro de 2021, “Ordem dos Advogados ignorava parecer sobre incompatibilidade do seu vice): ‘O parecer não é vinculativo, não determina qualquer atitude. É uma opinião. A opinião da Assembleia da República, que é o órgão de soberania que me elegeu, foi diferente [do parecer da PGR]: se considerasse que havia incompatibilidade, não me teria deixado ir a votos. É a senhora procuradora-geral da República que vai pôr em causa uma eleição no Parlamento?’

“O PS, por proposta do deputado José Magalhães, quis que a AR declarasse publicamente que a eleição não era uma forma de dizer que os cargos são compatíveis (v. PÚBLICO, 16 de Fevereiro de 2021, “PS quer Parlamento a demarcar-se de incompatibilidade de membro que elegeu para o Conselho Superior do Ministério Público).

“No entanto, a AR limitou-se a remeter para a PGR a aferição de incompatibilidades nos seus órgãos e das respectivas consequências (v. PÚBLICO, 16 de Fevereiro de 2021, “Comissão da Transparência vai dizer que não lhe cabe avaliar casos de incompatibilidade no Conselho Superior do Ministério Público).

“O que a AR fez foi aprovar, em dois momentos, duas notas sobre o assunto. Na primeira, a Comissão da Transparência afirma que ‘quando ocorra uma situação de incompatibilidade é à PGR que competirá avaliar, não cabendo intervenção da AR’. (v. PÚBLICO, id.); a segunda, da Comissão de Assuntos Constitucionais, diz: ‘Não cabe à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias a avaliação da existência de eventuais situações de incompatibilidade ou impedimento relativas a órgãos externos à Assembleia da República.’

“As duas notas vão no mesmo sentido e em nenhuma delas há qualquer desmentido ou demarcação da interpretação de Rui da Silva Leal. Logo, não havendo desmentido, eu não poderia fazer uma notícia sobre algo que não aconteceu.

“Outro reparo: o deputado diz que os debates estão acessíveis no arquivo digital do Canal Parlamento, mas isso não é verdade. Estão apenas as audições e não as reuniões normais das comissões.”

Em síntese: o PÚBLICO reproduziu uma afirmação de Rui da Silva Leal que, na opinião do leitor, não corresponde à verdade. Ainda segundo o deputado, apesar da correcção feita pela AR a essa afirmação, o jornal não acompanhou o desenvolvimento (follow up) da notícia e, por conseguinte, não publicou o respectivo “desmentido”, incorrendo, do mesmo passo, na falta de “omissão de noticiar”.

Mais que de uma muito discutível “obrigação de noticiar”, trata-se aqui de saber se foi escamoteada informação sobre uma matéria que, de um ponto de vista editorial, mereceu a atenção do jornal, atenção que se não devia ter limitado a uma parte da informação disponível, com prejuízo dos elementos novos que entretanto vieram a público. Neste caso, o elemento novo seria uma tomada de posição da AR, sob forma de desmentido, que contrariasse a declaração feita ao PÚBLICO pelo advogado Rui da Silva Leal.

Acontece que a AR não desmentiu as afirmações do advogado reproduzidas pelo PÚBLICO, tendo-se limitado a dizer que não lhe cabia pronunciar-se sobre eventuais incompatibilidades. Não existe, portanto, qualquer desmentido, pelo que ele não poderia ter sido noticiado.

Ora, nada havendo que desmentir na notícia, pretendia-se possivelmente que o PÚBLICO desmentisse o membro eleito do CSMP. Mas isso é do foro político e não do foro jornalístico. Se for divulgado um desmentido oriundo da AR ou do deputado José Magalhães, por exemplo, o PÚBLICO não deixará, por certo, de lhe dar o devido tratamento noticioso, se a Direcção Editorial do jornal entender que é esse o interesse dos leitores.

O provedor encontra neste episódio duas realidades distintas. A primeira é que um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República andou perdido ou esquecido durante oito meses numa comissão parlamentar sem que ninguém se preocupasse com o seu destino até um jornalista perguntar por ele. A segunda é que o PÚBLICO e os seus jornalistas – e, neste caso em concreto, a jornalista Maria do Céu Lopes – não se envolveram numa polémica que não releva da competência jornalística.

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